SEGUNDA PARTE
Da cortesia nas ações comuns e ordinárias
CAPÍTULO IV.
Da alimentação
ARTIGO I
Do que se deve fazer antes de comer; do lavar das mãos; da bênção da mesa;
e da maneira de se sentar à mesa.
A boa educação exige que um pouco antes de comer e tomar a refeição, a pessoa se lave as mãos, dê a bênção sobre os pratos, e se assente à mesa. Ela prescreve também algumas maneiras de fazer
corretamente essas ações.
Muito embora, como disse Nosso Senhor no Evangelho, o não ter lavado as mãos antes de comer, não seja o que suja o homem, é, contudo, de boa educação nunca comer sem o ter feito. Aliás esta é uma prática que sempre esteve em uso, e, se Nosso Senhor a censurou aos judeus, só o foi porque eles se apegavam tão escrupulosamente a ela, que acreditavam cometer uma falta grave, se não se lavassem as mãos antes de comer, e não só uma e sim várias vezes, por temor de estarem impuros caso tocassem certos pratos com as mãos mesmo só um pouquinho sujas, enquanto
não tinham o menor receio de se sujar por um grande número de crimes que cometiam. Portanto, Jesus Cristo nunca censurou
essa prática, mas somente o excesso.
A ordem que se deve observar ao lavar as mãos é fazê-lo de acordo com a posição que se ocupa na família; ou, quando se come em sociedade, conforme a posição que se ocupa entre os convidados.
Contudo o costume mais ordinário, quando se está com pessoas mais ou menos de mesma condição, é fazer algumas deferências uns aos outros, antes de lavar as mãos, mas não fazer grandes cerimônias para isso, e lavá-las quase todos ao mesmo tempo. Se no grupo houver uma ou várias pessoas de posição distinta, sempre se deve ir ao lavatório para lavar as mãos depois que elas se tenham lavado as mãos.
Entretanto, se uma pessoa superior nos pega pela mão e nos pede que lavemos juntamente com ela, seria uma falta de cortesia resistir-lhe.
Quando a pessoa se lava as mãos, deve abaixar-se um pouco para não sujar sua roupa; deve também tomar cuidado de não respingar água sobre alguém.
É uma falta de cortesia fazer muito ruído com as mão esfregando-as com força, especialmente quando são lavadas com outras pessoas. E se acontecesse ter as mãos muito sujas, seria conveniente
tomar essa precaução de as lavar em particular em qualquer outro lugar antes de as lavar em sociedade.
Se a pessoa que apresenta a água merece alguma honra, deve-se manifestar algum sinal de gentileza ao apresentar as mãos para receber a água. E não se deve esquecer de fazer também algum sinal depois de ter tomado a água para manifestar que já basta.
Quando não há ninguém para pegar a toalha, é de boa educação pegá-la imediatamente depois que se lavou as mãos. Cortês também é apresentar a toalha aos que se lavaram antes de nós ou conosco, antes de nos enxugar e insistir nisso. Nunca se deve deixar que a toalha fique entre as mãos de uma pessoa que seja de qualidade mais alta ou superior, e sim segurá-la pela ponta até que essa pessoa se tenha servido.
Ao enxugar as mãos deve-se tomar cuidado de não incomodar alguém e não molhar a toalha de maneira que os outros não possam mais encontrar uma parte seca para ali enxugar as suas mãos. Por isso é conveniente enxugar-se as mãos num só ponto da toalha ou do enxuga-mão de que se está servindo para esse fim.
Depois que todos lavaram as mãos, todos devem colocar-se em redor da mesa e ficar de pé e descobertos, em grande modéstia, até que se tenha dado a bênção dos pratos.
É totalmente indecente para cristãos colocar-se à mesa para tomar suas refeições antes de os pratos serem bentos por alguém dos presentes. Jesus Cristo que deve ser nosso modelo em todas as coisas, usou esta prática de benzer o que se tinha preparado para
alimentar a si e aos presentes, em suas refeições, conforme se conta no santo Evangelho. Agir de outra maneira é agir
como os animais.
Quando estiver presente algum eclesiástico, o dever dele é dar a bênção antes da refeição, e seria uma njúria a seu caráter, se um leigo, de qualquer qualidade, ousasse pretender benzer a mesa em sua presença; seria até transgredir os antigos cânones que proibiam mesmo a um diácono e com muito mais razão a um leigo, benzer na presença de um sacerdote.
Se não houver eclesiástico entre os convidados, ao chefe da família ou ao dono da casa ou à pessoa que tem alguma qualidade acima das outras, incumbe dar essa bênção. Contudo seria falta de educação que uma mulher a desse na presença de um ou vários homens.
Quando há alguma criança presente, acontece muitas vezes que se lhe dá a missão de cumprir essa missão.
Algumas vezes até quando uma pessoa não quer benzer a mesa em voz alta, cada um dos convidados o faz em particular em voz baixa; mas isto nunca deveria acontecer.
Terminada a bênção da mesa, a cortesia quer que se observe o que Nosso Senhor manda no Evangelho, a saber, colocar-se no último lugar no fundo da mesa ou que se espere que nos indiquem um
lugar; e é muito descortês que pessoas que não são distintas por sua qualidade, sejam as primeiras a sentar ou tomem os primeiros lugares. As crianças não devem sentar-se antes que todos os demais estejam em seus lugares. Ao sentar-se é preciso estar de cabeça
descoberta e não
pôr o chapéu antes que todos estejam sentados e que as pessoas mais consideráveis estejam cobertas.
Enquanto se está sentado à mesa, a cortesia exige que a pessoa se mantenha ereta sobre a cadeira e tome cuidado para não se apoiar sobre a mesa e não se apoiar inconvenientemente. Não é educado afastar-se tanto da mesa que não se possa chegar a ela ou se
aproximar tanto que se chegue a tocá-la.
Principalmente nunca se deve colocar os cotovelos sobre a mesa, mas deve-se tomar a posição de não adiantar-se mais do que até os punhos.
Um dos principais cuidados que se deve ter quando se está à mesa é não incomodar alguém, quer com os braços, quer com os pés. Por isso não se deve então estender, nem alongar nem os braços nem as
pernas nem empurrar com os cotovelos os que estão perto. E, se acontecer estar muito apertado, convém retroceder um pouco para ficar mais à vontade; deve-se mesmo apressar e se incomodar para que os outros estejam à vontade.