SEGUNDA PARTE
Da cortesia nas ações comuns e ordinárias
CAPÍTULO IV.
Da alimentação
ARTIGO IV
Da maneira de cortar e servir as carnes,
e de se servir a si mesmo.
É muito descortês tomar a iniciativa de cortar a carne e servi-la quando à mesa está uma pessoa de categoria superior, embora se saiba fazê-lo perfeitamente, a não ser que ela o mande fazer. O dono ou a dona da casa tem essa incumbência, ou as pessoas
do grupo a quem eles pedem prestar este serviço.
Quando se pede a alguém que corte a carne, mas ele não o sabe fazer, ele não deve ter vergonha nem dificuldade para ser dispensado; mas, se for alguma coisa que sabe fazer, depois de ter cortado a carne, ele a deixará no prato para que cada um tome,
ou poderá servi-la, se o dono lho pede. Ou então fará passar o prato diante do dono ou da dona da casa para que eles a distribuam à vontade.
Contudo, se a mesa for muito grande e não seja fácil a uma e mesma pessoa servir todos os convidados, se poderá servir apenas os que estão perto de si.
Os jovens e os que são de menor consideração não devem se meter a servir os outros, mas tomar somente para si o que está diante deles ou receber o que se lhes apresenta, com bons modos e gratidão.
Quando se serve os outros à mesa, é cortês dar-lhes tudo do que possam precisar, mesmo as carnes que estão perto
deles.
Também se deve dar-lhes sempre os melhores pedaços, que nunca é permitido tomar para si, e preferir as pessoas mais qualificadas a aquelas que o são menos, servindo-as por primeiro, e dando-lhes do
melhor, sem tocar em nada com o garfo. Se alguém pedir uma outra iguaria que está diante dessa pessoa, deve agir da mesma forma.
Para que se possa não tomar para si os melhores pedaços, o que poderia algumas vezes acontecer por engano, por não o saber, e para que se possa servi-los corretamente a quem são destinados, achamos bom dá-lo a conhecer aqui, para dar ocasião de não se enganar neste ponto.
Quando se trata de cozido, o peito do galo ou galinha, considerado o pedaço melhor, e as coxas são consideradas melhores do que as asas; num pedaço de carne de rês o que está mais misto entre gordo e magro, é sempre o melhor.
As pombas assadas são servidas inteiras ou cortadas pelo meio. Em todas as aves que esgravatam a terra com as patas, as asas são mais delicadas, mas as coxas valem mais nas aves que voam no ar. Nos perus, gansos e patos, o que é melhor é o que está sobre o peito, e se corta no sentido do comprimento. No leitão do que se gosta mais é a pele e as orelhas; nas lebres, nos lebrões e nos coelhos o que mais se procura é o lombo, as coxas e o que está do lado da cauda e atrás dos ombros.
No lombo de vitela, a parte melhor é a mais carnuda, mas o
rim é o que há de mais excelente
O que mais se gosta nos peixes é a cabeça e o que está mais perto dela. No que se refere aos peixes que só têm uma espinha dorsal em todo o seu comprimento, como a "vive" (?) e o linguado, a parte
do meio é incontestavelmente a melhor.
Quando se apresenta alguma coisa que se deva comer com a colher, é muito descortês tomá-lo com a sua, se a pessoa já se serviu com ela; mas se ainda não a usou, deve-se tomar com o que se apresenta, depois colocá-la sobre o prato daquele a quem se apresenta alguma coisa, e depois pedir uma outra para si.
Se acontecer que quem pediu para servir, tiver colocado sua colher no prato passando-o para frente ou apresentando-o, então deve-se usá-la para se servir, e não a sua própria.
Quando alguém que está afastado pedir alguma coisa, deve-se lhe apresentar, num prato limpo, o que pede e nunca com a faca, o garfo ou a colher somente.
Quando se apresenta alguma coisa em que há cinza, não se deve soprar em cima para tirar a cinza,mas convém limpá-la com a faca antes de a servir, porque o sopro da boca pode causar desgosto às
pessoas, e, ao soprar se está exposto a jogar a cinza na toalha ou na salva.
Quando alguém é convidado por outra pessoa, é falta de cortesia servir-se a si mesmo, a menos que o dono da festa lhe peça ficar à vontade, ou que ele seja muito íntimo e muito familiar com ela.
Quando alguém se serve a si mesmo, é muito descortês fazer
ruído com a faca, a colher ou o garfo, ao pegar alguma coisa da bandeja; mas deve-se tomar com tanta modéstia e educação, de modo que não se possa quase ser percebido e ainda menos ouvido pelos demais.
Sempre se deve utilizar a faca para cortar a carne e, ao cortá-la deve-se prendê-la com o garfo, que também se deve usar para colocar o pedaço cortado no prato. É preciso tomar muito cuidado para evitar pegar a carne com a mão, e tomar um pedaço grosso demais cada vez.
A boa educação não permite procurar no prato, revirando os pedaços de que mais se gosta; também não permite tomar os últimos pedaços nem os que estão mais afastados, mas quer que se tome o que está diante de si, pois é de muito mau gosto revirar o prato para pegar nele o que se deseja. Isto só pode acontecer
com os que servem os outros, que não o devem fazer a não ser raramente e de maneira muito delicada.
Também é uma grande grosseria estender o braço por cima da salva que está diante de si, a fim de alcançar uma outra pessoa; para isso deve-se pedir; mas é muito melhor aguardar até que se sirva.
Deve-se tomar uma vez o que se quer comer e é muito descortês pôr a mão duas vezes em seguida na travessa. É muito mais ainda pôr a mão para tomar pedaço por pedaço ou romper com o garfo a carne em lambadas.
Quando se quer tomar alguma coisa da travessa, deve-se antes enxugar a própria colher ou o garfo com que se quer
tomá-la, se tal utensílio já foi usado.
É muito descortês e até muito vergonhoso limpar os pratos com o pão ou limpá-los tanto, com a colher ou com qualquer outra coisa, de modo que não fique mais nada do caldo ou da carne. Não é menos descortês embeber o pão no caldo ou tomar o resto do
caldo com a colher. E é muito vil tomá-lo com os dedos.
Se cada um pega na salva, é preciso evitar tocar nela antes que as pessoas mais importantes do grupo o tenham feito, ou pegar em outro lugar da salva que não está em frente de si.
É mal educado tocar no peixe com a faca, a menos que não esteja em forma de pasta; ordinariamente se o toma com o garfo e se serve numa terrina.
As azeitonas tomam-se com a colher e não com o garfo. Toda sorte de tortas, doces e bolos, depois de cortados na bandeja ou bacia em que são servidos, tomam-se com a lâmina da faca que se coloca por
baixo e depois se colocam no próprio prato.
As nozes se tomam do prato com a mão, bem como as frutas cruas e os doces secos. A cortesia requer que se descasquem quase todas as frutas cruas antes de as servir e em seguida deve-se tirar bem sua
pele; contudo pode-se servi-las sem descascar.
Quando se cortam os limões e as laranjas, deve-se fazê-lo no sentido transversal; quanto às maçãs e as pêras cortam-se no sentido longitudinal.
Ao estar à mesa não se deve falar muito da qualidade das
iguarias, se são boas ou ruins, nem dizer facilmente sua opinião sobre os condimentos e os caldos, porque isto seria dizer que se tem muito prazer na comilança e se gosta de ser bem tratado, o que é
sinal de uma alma sensual e de educação bastante deficiente.
Entretanto é cortês mostrar sempre que se está satisfeito e contente com o que é servido e que se o acha bom; e, se o dono da festa perguntar a alguém sua opinião sobre as iguarias que são apresentadas, sempre se deve responder o mais educadamente e
positivamente quanto possível, para não causar uma decepção, como aconteceria se alguém manifestasse que a comida não é de seu gosto ou mal preparada.
É totalmente sem graça queixar-se de que as iguarias não são boas ou que foram mal condimentadas, como, por exemplo, que estão muito salgadas, ou apimentadas, ou quentes ou frias demais.
Tais observações só podem causar mal estar à pessoa que oferece, mas normalmente não é a causa desses acidentes e algumas vezes nem sequer os percebe. Não menos descortês é exceder-se em louvores sobre as iguarias e tudo o que é servido e manifestar por tais palavras que se gosta de comer bem e que se conhecem os melhores pedaços; porque isto manifesta que se é
um glutão e escravo
de seu ventre.
São João Batista de La Salle (1651-1719)
São João Batista de La Salle (1651-1719)