Da maneira de comer honestamente

AS REGRAS DE CORTESIA
SEGUNDA PARTE
Da cortesia nas ações comuns e ordinárias

CAPÍTULO IV.

Da alimentação


ARTIGO V

Da maneira de comer honestamente

A sabedoria dá diversos avisos importantes acerca da maneira de se comportar uma pessoa quando está à mesa, para comer educada e cortesmente. Ela aconselha que assim que está sentado à mesa, a

pessoa não deve deixar-se ir à intemperança de sua boca, olhando com avidez as iguarias, como se devesse comer tudo o que está na mesa e não deixar nada para os outros.

 Ela diz que não se deve ser primeiro a pôr as mãos nas iguarias, deve-se também deixar essa honra e esse sinal de preeminência à pessoa mais qualificada do grupo.

Ela proíbe apressar-se a comer; também é muito descortês comer com precipitação, o que manifesta um glutão.

Ela quer que cada um tome o que é servido, como pessoa comedida, comendo com muita reserva e moderação, embora se possa tomar tanto quanto se precisa.

Exorta a deixar lugar aos outros quando se está à mesa e não pôr a mão no prato ao mesmo tempo que eles; é o que a boa educação exige.

Ela manda ser o primeiro a deixar de comer por modéstia. É assim que se deve comportar uma pessoa sóbria, que faz profissão de seguir, durante a comida, as regras da temperança. E a razão que a sabedoria dá por isso é que não se deve exceder no comer, por

medo de cair em pecado.

Para levar a todos a praticar estes princípios de educação e sobriedade, se diz que quem come pouco terá um sono de saúde e, ao contrário, a insônia, a cólica e dores intestinais esperam o homem imoderado no comer.

A cortesia não nos prescreve nada mais preciso tocante à maneira de comer do que estas regras que a sabedoria nos traça para nos comportar devidamente nesta ação, que de fato exige de nós tantas e tão grandes precauções para a fazer corretamente.

Ele não quer que, ao comer, se ponha na boca um pedaço antes de ter engolido o precedente; não quer que a pessoa se precipite de tal maneira ao comer que se engulam os pedaços quase sem tomar o tempo de os mastigar. Ele manda comer sempre com muita

moderação, sem pressa, e não permite comer até vir o soluço, porque este é o sinal de uma intemperança excessiva. Como prática, ele dá, não ser o primeiro a começar a comer e nem comer de alguma iguaria nova ou recém servida, a não ser que a pessoa seja a mais considerada do grupo; e ele não suporta que se seja o

último à mesa, quando lá se encontram pessoas pelas quais se deve ter respeito. Com efeito, é uma grande falta de educação comer ainda depois que essas pessoas acabaram de comer e nada é mais descortês do que comer sozinho e fazer os outros esperarem pelo

retardatário para sair da mesa.

As crianças principalmente devem tomar por regra começar em último lugar a comer e no primeiro, a acabar.

Há ainda algumas outras práticas descorteses no tocante à maneira de comer a que se deve ter o cuidado de observar exatamente.

Por exemplo, é cortês não se curvar demais sobre o prato ao comer; sempre se deve juntar os lábios quando se come para não sorver com a língua como os porcos; é insuportável comer com as mãos, mas deve-se levar os pedaços à boca com a mão direita só e usar

a colher ou o garfo para tomar tudo o que é frio, gorduroso ou líquido ou que pode sujar as mãos.

Totalmente contra a boa educação é tocar só com os dedos as iguarias e ainda pior a sopa.

Durante a comida deve-se evitar olhar os que estão perto de si, para ver o que estão comendo ou se não lhes servem os pedaços que são melhores e mais de nosso gosto do que os que nos são servidos.

É muita falta de educação quando à mesa a pessoa começa a cheirar as iguarias ou apresentá-las aos outros para cheirá-las; e nunca é permitido comunicar aos outros quando se percebe alguma coisa

mal cheirosa na comida. Seria uma falta de educação ainda maior devolver à salva uma iguaria que se levou ao nariz para a cheirar.

Quando acontecer que se encontre alguma coisa repugnante na comida, como cabelo, carvão ou alguma outra coisa, não se deve mostrá-lo aos outros, mas retirá-lo tão discretamente que ninguém o perceba.

Quando, por descuido, se colocou na boca alguma coisa extraordinariamente quente ou que é capaz de fazer mal, deve-se procurar o engolir sem manifestar, se possível, nada do incômodo que isto causa, e, se for impossível o engolir, deve-se prontamente e sem que os outros o percebam tomar seu prato na mão e o aproximar da boca, voltando-se um pouco de lado e cobrindo-se com a outra mão, recolocar no prato o que se tem na boca e entregar imediatamente por trás o prato a alguém ou levá-lo

pessoalmente para fora (porque a cortesia não permite

que se jogue alguma coisa no chão). A respeito do que não se comeu, como os ossos, a casca dos ovos, a casca das frutas, as nozes, etc., tudo se deve sempre colocar na borda do prato.

Absolutamente contra a educação é tirar da boca com os dois dedos o que não se consegue engolir, como, os caroços, as espinhas, etc, e ainda mais descortês é deixá-los cair da boca para baixo ou ao

chão ou no prato, como se estivesse vomitando.

Também seria falta de educação cuspi-los no prato ou na mão; mas deve-se recebê-los delicadamente na mão esquerda mantendo-a semifechada e depois depositá-los no prato, sem que apareça.

   São João Batista de La Salle (1651-1719)