SEGUNDA PARTE
Da cortesia nas ações comuns e ordinárias
CAPÍTULO VII
Dos entretenimentos e da conversa
ARTIGO V
O que a civilidade permite ou não permite
acerca da discussão, da interrupção e da resposta
São Paulo adverte seu discípulo Timótio a que se evitem contendas por palavras; aliás nada é mais contra as regras da civilidade: deve-se ter em vista, segundo a opinião do mesmo Apóstolo, evitar as discussões tolas e descabidas, sabendo que geram rixas.
Com efeito, quando se quer impedir alguma coisa, é preciso tirar-lhe as ocasiões; e o motivo que São Paulo dá para isso é que não convém a um servo do Senhor viver discutindo. Portanto, ao estar em companhia, é preciso tomar cuidado para não se opor à
opinião dos outros e nada propor que seja capaz de levantar discussões e contestações. Mas, se os outros afirmam alguma coisa que não é verdadeira ou que pareça inconveniente, pode-se propor simplesmente o próprio pensamento e com tanto respeito que os que têm opinião contrária não fiquem ofendidos. Se alguém
contradiz nossa opinião, devemos manifestar que de bom grado submetemos a nossa à dele, contanto que a dele não seja claramente contra as máximas cristãs e às regras do Evangelho; pois então estaríamos obrigados a sustentar o que afirmamos, mas isto se deve fazer de maneira tão envergonhada e tão respeitosa, que a pessoa contradita, longe de se ofender com isso, escute de bom grado nossas razões e se renda a elas, caso não for completamente teimosa e irracional; porque a palavra amena, na opinião do livro de sabedoria, multiplica os amigos e acalma os inimigos.
Se nos encontramos com uma pessoa que facilmente aceita uma opinião contrária, a educação pede que não externemos facilmente nossa opinião sobre alguma coisa; pois, como diz muito bem o Sábio, uma contenda súbita acende o fogo da cólera. E, como os grandes faladores estão mais sujeitos a sustentar teimosamente sua opinião, é preciso, conforme o conselho do mesmo Sábio, não litigar com um tagarela, para não jogar mais lenha em seu fogo. Acima de tudo é preciso tomar cuidado, como ainda aconselha o mesmo, para nunca contradizer de forma alguma a palavra da verdade. Por isso, quando não se conhece bem alguma coisa, sempre se deve tomar o partido de calar e escutar os outros.
Quando se está numa conversa em que se discute, como ordinariamente acontece nas escolas, é preciso escutar com atenção o que os outros dizem; e se formos instados ou obrigados a falar, podemos dizer nossa opinião sobre o problema, assunto da discussão; contudo, se não o conhecemos, não devemos ter vergonha de nos escusar de falar.
Se acreditamos que a opinião proposta é verdadeira, deve-se mantê-la, mas que seja com moderação tal que a pessoa com que se discute ceda sem dificuldade. Se as razões que os outros alegam
fazem concluir que estamos no erro, não devemos obstinar-nos a manter uma causa errada, mas devemos de boa mente ser os primeiros a nos condenar. Esta é a maneira de sair honrado.
Quando se está assim na discussão, não se pode querer levar a melhor; basta propor a própria opinião e apoiá-la com bons argumentos, e se deve ter essa condescendência para com os outros de seguir a opinião deles quando seu número é maior.
Não é educado contradizer alguém, a não ser que seja uma pessoa de condição muito abaixo da nossa quem afirma coisas fora de propósito e que, por causa das conseqüências delas se esteja na obrigação de dizer o contrário do que ela afirmou. Mesmo assim,
seria preciso fazê-lo com tanta gentileza e honestidade que a pessoa contradita seja forçada a expressar sua gratidão.
É muito incivil interromper uma pessoa que fala perguntando, por exemplo, Quem é este? Quem é que disse ou fez isto? Essa interrupção é ainda muito mais descortês quando quem fala utiliza termos que encobrem o pensamento.
Também é uma grosseria chocante interromper a quem narra alguma coisa para o dizer melhor; e não é outra menor, quando um outro começou a narrar uma historia, dizer que já sabe o que vai contar, e, se não a conta corretamente, rir-se dele e dar-lhe motivo de se ofender seriamente, sorrir para manifestar que o que
ele disse não foi assim. É uma vergonha dizer: Eu garanto que isto não é assim. Este modo de falar é absolutamente grosseiro e descortês e só pode vir de uma pessoa mal educada.
Se durante a conversação alguém se engana ao falar, a ninguém e permitido manifestá-lo a ele; como, por exemplo, se ele trocar o nome de um homem ou de uma cidade por outro, deve-se aguardar que o orador se corrija a si mesmo ou ofereça uma ocasião de falar
sobre o seu assunto. Neste caso é preciso retificar sem afetação por receio de o magoar.
Contudo, caso se tratar de um fato que se está obrigado a esclarecer para o interesse de alguém, pode-se dizer o que aconteceu de fato, contanto que seja feito de maneira sempre educada e com muita
circunspeção.
Devemos tornar-nos muito atentos ao que diz a pessoa que nos fala, para não incomodá-la a ter que repetir a mesma coisa. Porque seria uma grande falta de educação dizer, por exemplo: Que é que o senhor falou, não entendi? Ou alguma outra coisa semelhante.
Quando alguém ao falar tem dificuldade para encontrar a palavra e hesita, é totalmente contra a boa educação sugerir-lhe ou acrescentar as palavras que ele não disse corretamente; deve-se aguardar até que ele o pergunte.
Ninguém deve intrometer-se para repreender algumas pessoa, exceto se estiver obrigado a isso ou que a coisa de que se trata for de importância.
É uma grande falta erigir-se como crítico e censor público; deve-se julgar bem de todo o mundo e não se incomodar com ações alheias, a menos que se esteja encarregado de os dirigir e obrigado a instruí-los e levá-los ao bem.
Entretanto, ao ser avisado ou repreendido por alguém, é próprio da cortesia recebê-lo bem e manifestar muita gratidão; quanto mais se manifestar, tanto mais cristão se é e mais estimado.
Se acontecer que sejamos injuriados por outra pessoa, é próprio de um homem educado não ficar magoado; pelo contrário, em vez de se defender não se deve responder absolutamente nada. Não agüentar uma injúria é sinal de uma espírito reles e covarde. Uma
alma cristã tem o dever de não demonstrar ressentimento e não o ter efetivamente. O conselho do Sábio é esquecer todas as injúrias que recebemos do próximo. E Jesus Cristo
quer que não somente
perdoemos aos inimigos, mas lhes façamos o bem, por mais prejuízo ou desprazer que possamos ter recebido.
Se alguém quiser se defender, deve manifestar que de nenhuma forma está ofendido.
São João Batista de La Salle (1651-1719)