Da maneira de falar das pessoas e das coisas

AS REGRAS DE CORTESIA


SEGUNDA PARTE
Da cortesia nas ações comuns e ordinárias


CAPÍTULO VII

Dos entretenimentos e da conversa
ARTIGO II

Da maneira de falar das pessoas e das coisas

É muito mal educado falar sempre de si mesmo, fazer comparações entre a conduta pessoal e a dos outros. Dizer, por exemplo, quanto a mim, eu não faço assim; ele não faz isso; uma pessoa como eu, etc.

esta maneira de falar é muito importuna e indiscreta, porque nunca assenta bem fazer comparações entre si e os outros, e dos outros entre si; essas comparações sempre são odiosas.

Há pessoas tão cheias de si mesmas que sempre conversam sobre o que eles fizeram e o que fazem e fazem questão de que se dê muito valor a todas as suas palavras e todas as suas ações. Esta atitude nas conversas é muito incômoda e difícil de suportar pelos outros.

Gloriar-se e falar vantajosamente de si é uma coisa que contraria completamente a cortesia; também é sinal de mesquinhez. Característica de um homem educado é nunca falar do que lhe diz respeito, a não ser para responder ao que se lhe pergunta; ainda nesse caso deve fazê-lo com muita moderação, muita modéstia e reserva.

Ao contar alguma coisa que se fez ou que nos aconteceu quando estivemos na companhia de uma pessoa de uma condição muito superior à nossa, é muito sem graça falar no plural e dizer, por exemplo:

Nós fomos, ou, nós fizemos isso ou aquilo. Neste caso não se deve nem elogiar a si mesmo, nem sequer falar de si; mas é cortês falar do assunto como se não tivéssemos participado, e dizer: O senhor Fulano fez tal coisa: Sicrano foi a tal lugar.

Também quando um inferior fala de uma ação que uma pessoa a quem deve respeito lhe fez, não é educado que diga cruamente: O senhor Fulano me disse; O senhor um tal veio me visitar. Em lugar disto, deve-se usar os seguintes termos ou outros semelhantes para se expressar: O Sr. Fulano me deu a honra de me dizer isto; O Sr. Fulano me deu a honra de vir me visitar. Ou então, dirigindo-se a essa pessoa: O senhor teve a gentileza, o senhor me fez o favor de se incomodar comigo, etc.

A boa educação requer que, ao falar dos outros, sempre se fale de maneira favorável. Por isso nunca se deve falar de quem quer que seja quando não se tem alguma coisa boa a dizer. Não há ninguém, por mais ruim que seja, do qual não se possa dizer alguma coisa

boa. Contudo, não seria educado falar bem de uma pessoa que tivesse cometido alguma infâmia: nessas ocasiões é melhor guardar silêncio a seu respeito; e se os outros falam disso, manifestar compaixão para com ele.

Na conversação também deve-se mostrar que se tem estima para com os outros. Por isso não devemos contentar-nos com falar bem deles, mas também tomar cuidado de não o fazer de modo frio, ou dizer alguma coisa em favor deles e acrescentar um "mas", que

apaga toda a estima que poderia produzir o que se disse.

Sempre se deve falar de maneira respeitosa e em termos que manifestam muita deferência às pessoas com as quais se está conversando, a não ser quando se trate de uma pessoa inferior, e mesmo neste caso deve-se utilizar expressões educadas para com ela.

A boa educação não permite chamar as pessoas com que se quer falar em voz alta ou de cima de uma escada ou da janela; tomar-se tais liberdades também seria uma falta de respeito que se deve ter pelas pessoas com que se está. Deve-se então enviar alguém procurar essa pessoa ou ir pessoalmente até ela, para fazê-la chegar perto.

Se alguém estiver na companhia de uma pessoa a quem deve respeito e esta tiver necessidade de alguém, não se deveria permitir afastar-se para procurá-la; seria educado prestar-lhe prontamente esse serviço.

É uma falta de educação perguntar a uma pessoa superior "Como vai"?, ao saudá-la, a não ser que estivesse doente ou indisposta; isto só é permitido a pessoas de mesma condição ou inferior.

Caso se queira manifestar a uma pessoa a quem se deve muito respeito, a alegria de vê-la de boa saúde, convém, antes de falar, informar-se junto de um serviçal dela, sobre seu estado, e dizer-lhe depois com modos educados: Estou muito satisfeito, Senhor,
porque está em perfeita saúde.

Quando se pergunta a alguém como vai, deve responder: Estou bem, graças a Deus, disposto a lhe prestar meus humildes respeitos, ou utilizar algumas expressões semelhantes que lhe possam ocorrer à mente.

A cortesia não permite que alguém, quando está em companhia de pessoas se queixe de estar sofrendo de algum mal-estar ou de algum incômodo. Isto é tarefa dos outros; às vezes parece que há pessoas que o desejam para estarem mais à vontade.

Há pessoas que, ao estarem em companhia de outras, só falam do que gostam e algumas vezes até de coisas a que têm particular afeto; quando gostam de um cachorro, de um gato, de um passarinho ou qualquer outro animal, continuamente vão falar disso; até em sociedade falarão de tempos em tempos a ele e, às

vezes, chegam a interromper a conversa para isso. Isto até os impede muitas vezes de prestar atenção ao que os outros dizem. Todas essas maneiras de agir manifestam mesquinhez e baixos sentimentos e são muito contrários às regras de civilidade e contra o respeito que devem ter para com as pessoas com que estão conversando e assim são insuportáveis numa pessoa de boa família; porque tais afetos são coisas vulgares, é muito mal educado manifestar tanta satisfação por eles e manifestá-los com tanto espalhafato.

Há outros que ao fazerem uma viagem ou negócio, ou ao lhes acontecer algum acidente, agradável ou funesto, não param de falar do que lhes aconteceu ou do que ouviram falar, ou do que fizeram.

Eles acham que os ouvintes devem gostar do que contam, porque lhes agrada a eles. Isto é sinal do amor que têm a si mesmos e sentem gosto no que fazem ou no que lhes acontece.

   São João Batista de La Salle (1651-1719)