Da maneira de dar e receber e como agir ao encontrar alguem...

AS REGRAS DE CORTESIA


SEGUNDA PARTE
Da cortesia nas ações comuns e ordinárias


CAPÍTULO VIII

Da maneira de dar e receber e como agir ao encontrar alguém e ao se aquentar

Antes de receber qualquer coisa, ao estar fora da mesa, deve-se fazer uma reverência, retirar as luvas, beijar a mão e receber essa coisa erguendo-a gentilmente à boca sem precipitação, como para a

beijar, sem a chegar tão perto à boca, mas só para fazer de conta.

Quando se quer dar ou devolver alguma coisa a outras pessoas, deve-se apresentá-la prontamente, com receio de as fazer esperar, entregá-la depois como se a beijasse, e tendo-a entregue, beijar a mão e fazer uma reverência. O mesmo se deve fazer cada vez que se apresenta alguma coisa, quer nos seja pedida, quer não.

Quando se quer dar ou tomar alguma coisa, é mal educado estender a mão diante de alguém, especialmente se for uma pessoa à qual se deve ter consideração e respeito: sempre se deve dar ou receber

por trás tudo o que se dá, tanto à mesa quanto em outra parte, a menos que isto não se possa fazer sem incomodar alguém. E quando se está obrigado a dar e receber alguma coisa por diante de outra pessoa, a civilidade requer pedir desculpas à pessoa diante da

qual se dá ou se recebe, pedindo licença por algum sinal e palavra educada, dizendo, por exemplo: Meu Senhor, com licença, por favor; Senhor, queira desculpar, etc.

Quando se dá alguma coisa, é educado apresentá-la de maneira que se possa pegá-la facilmente no ponto em que deve ser agarrada; assim, ao apresentar a alguém uma faca ou uma colher, deve-se

voltar o cabo para o lado de quem as deve receber.

No caso de alguém do grupo deixar cair alguma coisa, a boa educação quer que nos apressemos para a ajuntar antes dele e lha devolver com gentileza. Se nós mesmos deixamos cair alguma coisa, devemos ajuntá-la prontamente, sem permitir que um outro se incomode para isso. E, se um outro foi mais rápido do

que nós e no-lo devolve, precisamos agradecer gentilmente, pedindo-lhe perdão pelo incômodo que lhe causamos.

Ao encontrar no caminho alguma pessoa distinta por seu emprego ou sua posição social, é cortês saudá-la com muita gentileza sem se voltar muito para ela, a menos que não seja particularmente conhecida.

Em Paris saúdam-se ordinariamente só as pessoas conhecidas e que ocupam uma posição social eminente e muito acima do comum, como os príncipes e os bispos. Contudo é educado prestar esse dever aos eclesiásticos e aos religiosos.

É incivil e até ridículo olhar as pessoas que passam para ver se elas saúdam. Sempre se deve ser o primeiro nisto, como também em outras coisas, conforme o conselho de São Paulo. Honrar os outros é atrair honra para si.

Quando na rua se topa frente a frente com uma pessoa de qualidade ou um superior, é de boa educação desviar-se um pouco e passar para o lado mais baixo do que o dela chegando-se para o lado da valeta.

Se não houver altos e baixos, mas um caminho uniforme, deve-se ir para a esquerda da pessoa que se encontra e deixar-lhe a mão direita livre, e quando ela passa, deve-se ficar parado e a saudar com respeito e até com profundo respeito, se a condição dela o exigir.

No caso de encontrarmos esta pessoa junto de uma porta ou em alguma lugar estreito, precisamos parar imediatamente, se possível, a fim de a deixar passar, e se for preciso abrir uma porta, levantar uma cortina, retirar algum objeto que impede a passagem livre, a civilidade quer que passemos à frente da pessoa para fazer essas coisas e que, ao passar em frente, dobremos um pouco o corpo diante dela.

Se encontramos na rua uma pessoa que não nos é familiar, perguntar-lhe de onde vem ou para onde vai, é assumir uma atitude um pouco livre demais e que de forma alguma é honesta.

Quando, ao ir e vir estamos obrigados a passar e repassar diante de uma pessoa que se deve respeitar, a boa educação quer que façamos o possível de passar por detrás dela; contudo se isto não for possível, devemos inclinar-nos educadamente cada vez que

passarmos diante dela.

Ao estar junto da lareira, a cortesia não pode permitir que cheguemos as mão perto das brasas, passá-las pela chama ou colocá-las por cima; seria ainda muito mais inconveniente pôr ali os pés.

Também grande falta de educação é voltar as costas para o fogo, e, se alguém se tomar essa liberdade, é preciso ficar longe de imitá-lo.

Sentado junto ao fogo, também não se deve levantar da cadeira para ficar de pé, a não ser que a pessoa importante se levante, porque então é preciso levantar-se ao mesmo tempo do que ela. Seria muito descortês ficar acocorado ou sentar no chão e se

aproximar mais perto do fogo do que os outros.

Sinal de baixeza de alma é brincar com as pinças ou atiçar o fogo; nem se deve sequer acrescentar lenha e a educação quer que se deixe este cuidado ao dono da casa ou ao que tem o cuidado do fogo.

Quando se prepara o fogo, é conveniente arranjá-lo de maneira que todos os que estão junto dele possam aquentar-se facilmente; querer mudá-lo de posição sem evidente necessidade, é sinal de espírito

inquieto e que não pode permanecer em repouso.

Contudo, quando se estiver diante do fogo com uma pessoa a quem se deve muito respeito e ela mostra dificuldade para se acomodar ao fogo, convém tomar imediatamente as pinças, a menos que essa pessoa absolutamente queira fazer esse trabalho, como para se

divertir.

Totalmente contra a civilidade é chegar-se tão perto do fogo que se queimem as pernas, assim como colocar os pés fora dos sapatos e se aquentar assim em presença dos outros, e ainda muito pior é as meninas e as mulheres levantarem bem alto a saia quando

sentadas ao fogo, como aliás em qualquer outra ocasião.

A caridade e a honestidade querem que nos incomodemos para dar lugar para os outros quando estivermos junto ao fogo, e que fiquemos mesmo mais atrás para dar ocasião aos que têm mais necessidade de se aquecerem.

Se alguém jogar cartas, papel ou outras coisas semelhantes no fogo, é mal educado retirá-los, por qualquer motivo que possa ser.

Quando se distribuírem guarda-fosforos na própria casa, não se deve permitir que um empregado os apresente a uma pessoa que está conosco ao fogo; a educação requer que os apresentemos pessoalmente.

Fora da nossa casa, se houver só um guarda-fosforo e se a pessoa com quem estamos insiste em que o usemos, depois de manifestar dificuldade em aceitar, não se deve recusar. Mas é conveniente deixá-lo sem tardar depois de o colocar delicadamente a seu lado, sem que alguém o perceba, e não o usar. Deve-se também aceitar com educação aquele que se nos apresenta, e quando se tiver pulado a vez de alguém, não seria educado dizer que se lhe dê o que mos apresentam.

  São João Batista de La Salle (1651-1719)