Do jogo

AS REGRAS DE CORTESIA
SEGUNDA PARTE
Da cortesia nas ações comuns e ordinárias
CAPÍTULO V

Das Diversões
ARTIGO III

Do jogo

O jogo é uma diversão que algumas vezes é permitido, mas é preciso fazê-lo com muita precaução: é uma ocupação em que se pode empregar algum tempo, mas deve-se ter uma certa reserva. É necessária muita precaução para não se deixar ir a alguma paixão

desregrada: deve-se manter a moderação para não se entregar inteiramente, nem empregar nele tempo demais.

Como é impossível comportar-se nele com boa educação, sem essas duas condições, também não é permitido jogar sem elas.

Duas paixões especialmente há das quais se deve tomar cuidado para não se deixar ir no jogo: a primeira é a avareza e esta ordinariamente é a fonte da segunda, que é a impaciência e a exaltação.

Os que jogam devem tomar muito cuidado para não jogar por avareza, visto que o jogo não foi inventado para ganhar dinheiro, mas somente para relaxar um pouco o espírito e o corpo depois do

trabalho.

Daí resulta que não é de boa educação jogar somas vultosas, mas simplesmente um dinheirinho que não possa enriquecer a quem ganha, nem empobrecer a quem perde, mas que serve para entreter o jogo e dar mais gana de ganhar, o que contribui muito para o

prazer do jogo.

Uma grande falta de cortesia é impacientar-se no jogo, quando não se consegue o que se desejava; mas é uma vergonha exaltar-se e pior ainda praguejar.

É preciso comportar-se de maneira honesta e pacífica, para não perturbar a diversão.

Completamente contrário à boa educação é trapacear no jogo, isto chega a ser um furto e, ao ganhar, há obrigação de restituir ainda que se tivesse ganho em parte por essa esperteza.

O dinheiro que se ganha não deve ser exigido com precipitação, mas se alguém faltou para colocar em jogo e chegou a perder, somente se deve exigir dele ou levá-lo a colocar em jogo o que está devendo de maneira educada fazendo-lhe ver apenas que não

colocou em jogo, assim: "Parece que você esqueceu de

colocar em jogo". Ou se perdeu e todos continuam a jogar: "Por favor, ponha duas vezes em jogo", ou "Falta tal quantia do que deveria estar, porque não colocou na última vez". Nessas ocasiões é preciso ter muito cuidado para evitar certas maneiras de falar, tais

como: "Pague, ponha em jogo!"

Embora no jogo se deva manifestar muita alegria no rosto, porque se joga apenas para se divertir, é contra a cortesia manifestar uma alegria extraordinária quando se ganha, bem como ficar perturbado, chateado e zangar-se, quando perde. Isto seria sinal de que se joga para ganhar dinheiro. Um dos melhores meios que se possa tomar para não cair em algum desses defeitos é só jogar tão pouco dinheiro de modo que nem o que ganha, nem o que perde seja

capaz de excitar qualquer paixão nos que jogam.

Também é falta de cortesia cantar ou assobiar durante o jogo, ainda que fosse bem suavemente e entre os dentes. É ainda pior tamborilar com os dedos ou os pés, é o que por vezes acontece aos que estão muito concentrados em seu jogo.

Se acontecer alguma discussão no jogo, é preciso evitar o gritar, o contestar ou o teimar, mas se houver necessidade de resistir, deve-se usar muita moderação e honestidade, expondo simplesmente em poucas palavras, o direito que se crê ter, sem elevar a voz nem um pouco. Quando se perde, é dever de

educação pagar sempre antes de ser interpelado a isso, porque essa atitude de pagar o que se deve ao jogo sem mostrar mágoa, manifesta um espírito generoso e honesto de uma pessoa de boa família.

Nunca se deve tomar a iniciativa de jogar com uma pessoa de importância superior senão a pedido dela; mas quando uma pessoa importante obriga alguém que é de condição muito inferior à dela para jogar com ela, é preciso que cuide muito de não manifestar, nem pressa no jogo, nem vontade de ganhar, porque é sinal de pequenez de espírito e se baixeza de condição.

Mesmo sabendo que a pessoa com que se joga e a quem se deve respeito tem mágoa de perder, não se deve abandonar o jogo ao ganhar, a menos que não venha dela ou tenha recuperado o que tinha perdido.

Mas ao perder é possível retirar-se educadamente e isso sempre é permitido sejam quais forem as pessoas com quem se joga.

É cortês manifestar contentamento quando uma pessoa a quem se deve respeito ganha no jogo, especialmente quando pessoalmente não se está jogando e somente se é espectador.

Uma coisa importante é abster-se inteiramente de jogar quando não se está de bom humor no jogo, porque poderiam acontecer muitos inconvenientes que se devem prevenir. Mas se a pessoa com quem se joga está de mau humor, não se deve mostrar incômodo nem por palavras, nem pela maneira de agir. Deve-se ainda mais evitar a exaltação; procurar prosseguir tranqüilamente seu jogo, como se nada tivesse acontecido. A prudência até e a sabedoria exigem que

se leve tudo numa boa e que nunca se perca o respeito que se deve a essa pessoa, nem a calma que sempre se deve conservar no espírito.

É muito descortês zombar de alguém que tivesse errado uma jogada. Se vierem pessoas mais qualificadas para jogar e nós ocupamos seus lugares, é dever de cortesia cedê-lo a elas, e se jogarmos com alguma pessoa de qualidade superior, dois contra dois, e que essa pessoa tenha ganho a partida, seu companheiro nunca deve dizer: "Nós ganhamos" e sim "O Senhor ganhou" ou "O Sr. Fulano ganhou".

É totalmente contrário aos bons modos esquentar-se no jogo; mas também não se deve ficar negligente nem deixar perder por condescendência, a fim de não fazer crer a pessoa com quem se joga, que se esforça pouco para contribuir para sua diversão.

Pode-se jogar vários tipos de jogos, alguns dos quais exercitam o espírito e outros exercitam especialmente o corpo.

Os jogos que exercitam o corpo, como a péla, o jogo da choca, a bola, a bola jogada com pau, a peteca, são preferíveis aos que exercitam e ocupam demasiado o espírito, tais como o xadrez e as damas: ao jogar esse tipo de jogos que exercitam o corpo, deve-se prestar muita atenção para ´não fazer contorções corporais ridículas ou indecentes. Também se deve evitar esquentar-se demais e desabotoar ou tirar a roupa ou até o chapéu, porque essas são coisas que a cortesia não permite. Ao jogar xadrez ou damas, é cortesia

ceder à pessoa com que se joga as figuras ou as pedras brancas, ou colocá-las diante dela ou pelo menos ajudar-lhe a colocar ou dispor-se a ordená-las no tabuleiro, e não aceitar as figuras ou as pedras brancas, nem colocá-las à frente de si.

Há alguns jogos de cartas que às vezes se podem permitir jogar, tais como o "piquê", porque eles requerem sempre um pouco de habilidade e não são puramente de azar. Mas há outros, como o "brelão" e o "lansquené", que são de tal modo de azar que não

somente são proibidos pela Lei de Deus, mas não são permitidos de acordo com as leis da educação. Assim devem ser considerados como indignos de uma pessoa educada.

A cortesia também requer que o tempo que se emprega no jogo seja moderado e que longe de jogar continuamente, como fazem alguns, não se jogue com demasiada freqüência, nem várias horas seguidas;
porque isso seria fazer constituir sua ocupação com uma coisa que propriamente apenas é uma cessação ou interrupção de um pouco de tempo, o que não se coaduna com a sabedoria de uma pessoa de boa educação.
   São João Batista de La Salle (1651-1719)