CARTA ENCÍCLICA
SUMMI PONTIFICATUS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
SUMMI PONTIFICATUS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O OFÍCIO DO PONTIFICADO
1. O arcano desígnio do Senhor, sem nenhum merecimento de
nossa parte, quis confiar-nos a altíssima dignidade e as gravíssimas
solicitudes do Sumo Pontificado justamente no ano em que ocorre o quadragésimo
aniversário da consagração da humanidade ao sacratíssimo coração do
Redentor, feita pelo nosso imortal predecessor, Leão XIII, ao declinar do
século passado, quando surgia já a aurora do ano santo.
2. Com que alegria, comoção e íntimo assentimento
acolhemos então como mensagem celeste a Encíclica
Annum Sacrum, justamente quando, novo levita, pudéramos
recitar: Introibo ad altare Dei (Sl 42, 4). E com que ardente entusiasmo o nosso
coração se uniu aos pensamentos e intenções que animavam e guiavam aquele
ato verdadeiramente providencial de um Pontífice que conhecera, com tão
profunda agudeza, as necessidades e chagas, claras e ocultas, do seu tempo!
Portanto, como poderíamos deixar de sentir hoje profundo reconhecimento para
com a Providência, que houve por bem dispor coincidisse o nosso primeiro ano de
pontificado com uma recordação tão importante e cara do nosso primeiro ano de
sacerdócio? E como poderíamos deixar de valer-nos, com alegria, desta ocasião
para prestar culto ao "Rei dos reis e Senhor dos dominadores" (1 Tm
6, 15; Ap 19, 16) quase como oração de entrada do nosso pontificado, no
espírito do nosso inesquecível predecessor e na fiel atuação das suas
intenções? Como poderíamos deixar de fazer desse culto o alfa e o ômega da
nossa vontade e da nossa esperança, do nosso ensino e da nossa atividade, da
nossa paciência e dos nossos sofrimentos, tudo consagrado à difusão do reino
de Cristo?
A fonte de indizíveis bens
3. Se, à luz da eternidade, contemplarmos os acontecimentos
externos e internos que se desenvolveram nos últimos quarenta anos, e lhes
medirmos as grandezas e deficiências, aquela consagração universal a
Cristo-Rei, pelo seu sagrado significado, pelo seu simbolismo exortador, pelo
seu escopo de purificação e de elevação, revela-se aos olhos do nosso
espírito como tendente a robustecer e defender cada vez mais as almas, ao mesmo
tempo que, na sua previdente sabedoria, visa a sarar e enobrecer a sociedade
humana e promover o seu verdadeiro bem.
Revela-se-nos também cada vez mais claramente, como uma
mensagem de exortação e de graça de Deus, dirigida não só à sua Igreja mas
também a um mundo hoje tão necessitado de sacudimento e de guia, porquanto,
imerso no culto do presente, vem desorientando-se cada vez mais e esgotando-se
na fria investigação de ideais puramente terrenos; mensagem a uma humanidade
que, em fileiras cada vez mais numerosas, se destaca da fé em Cristo e, mais
ainda, do conhecimento e da observância da sua lei; mensagem contra uma
concepção do mundo, segundo a qual a doutrina de amor e de abnegação do
Sermão da montanha e a divina ação de amor da cruz não passam de escândalo
e de loucura. Como o precursor de Cristo proclamava certo dia: "Eis o
Cordeiro de Deus" (Jo 1, 29), advertindo que o Esperado das gentes, se bem
que ainda desconhecido, habitava entre os homens; assim o representante de
Cristo, esconjurando, dirigia o seu brado possante: "Eis o vosso Rei!"
(Jo 19, 14) aos renegadores, aos duvidosos, aos indecisos, aos hesitantes que,
ou se recusavam a seguir o Redentor glorioso, sempre vivo e operante na sua
Igreja, ou seguiam-no descuidados e lentos.
4. Da difusão e arraigo do culto do divino coração do
Redentor, que teve esplêndido coroamento não só na consagração da
humanidade, ao findar do século passado, mas também na introdução da festa
da realeza de Cristo, por nosso imediato predecessor, de saudosa memória,
advieram indizíveis bens a inúmeras almas: um "rio cujos braços alegram
a cidade de Deus" (Sl 45, 5). Que época, mais do que a nossa, teve
necessidade de semelhantes bens? Que época, mais do que a nossa, foi tão
atormentada pela falta de espiritualidade e profunda indigência interior, apesar do progresso técnico e
puramente civil?
Acaso, não se poderá aplicar-lhe a palavra reveladora do Apocalipse:
"Pois dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes,
porém, que és tu o infeliz; miserável, pobre, cego e nu" (Ap 3, 17)?
5. Veneráveis irmãos! Existe acaso dever maior e mais
urgente do que anunciar... "as inescrutáveis riquezas de Cristo" (Ef
3, 8) aos homens do nosso tempo? E haverá coisa mais nobre do que
desfraldar o
vexilo real diante desses que têm seguido ou seguem bandeiras falazes e
conquistar para o glorioso vexilo da cruz aqueles que dele desertaram?
Que
coração se não deveria abrasar e sentir-se impelido a socorrer tantos
irmãos
e irmãs que, devido a erros e paixões, incitamentos e prejuízos, se
afastaram
da fé no Deus verdadeiro, destacando-se assim da jucunda e salutar
mensagem de
Jesus Cristo? Quem quer que pertença à milícia de Cristo – eclesiástico
ou
leigo – não deveria acaso sentir-se estimulado e incitado a maior
vigilância,
a mais decidida defesa, ao ver que as fileiras dos inimigos de Cristo
cada vez
aumentam mais, ao perceber que os porta-vozes dessas tendências,
renegando ou
praticamente descurando as verdades vivificadoras e os valores contidos
na fé em
Deus e em Cristo, partem sacrilegamente as tábuas dos mandamentos de
Deus para
substituí-las com tábuas e normas que excluem a substância ética da
revelação do Sinai, o espírito do Sermão da montanha e da cruz? Quem
poderia, sem sentir profunda aflição, observar como tais desvios
preparam uma
trágica messe, justo no meio daqueles que, nos dias de tranqüilidade e
segurança se alistam entre os sequazes de Cristo, mas que – infelizmente
cristãos mais de nome que de fato – quando se trata de perseverar, de
lutar, de
sofrer, de afrontar as perseguições claras ou simuladas, tornam-se
vítimas da
pusilanimidade, da fraqueza, da incerteza, e apavorados diante dos
sacrifícios
impostos pela sua profissão cristã, não encontram a força necessária
para
beber o cálice amargo dos fiéis a Jesus Cristo?
I. SOB O SINAL DE CRISTO-REI
6. Nestas condições de tempo e de espírito, veneráveis irmãos, possa a iminente festa de Cristo-Rei, em que chegará a vosso
conhecimento esta nossa primeira encíclica, ser para vós um dia de graça, de
profunda renovação e de novo despertar no espírito do reino de Jesus Cristo.
Seja um dia no qual a consagração do gênero humano ao divino Coração, que
deve ser celebrada com particular solenidade, reúna junto do trono do eterno
Rei os fiéis de todos os povos e de todas as nações em adoração e
desagravo, para renovarem a ele e à sua lei de verdade e de amor o juramento de
fidelidade hoje e sempre. Seja um dia de graça para todos os fiéis, no qual o
fogo, por Jesus Cristo trazido à terra, se ateie em chama cada vez mais
luminosa e pura. Seja um dia de graça para os tíbios, os cansados, os
enfastiados, em que nos seus corações, tornados pusilânimes, amadureçam
novos frutos de renovação de espírito e de fortalecimento de ânimo. Seja um
dia de graça também para aqueles que ainda não conhecem Cristo e para os que
o perderam; um dia no qual, de milhões de corações fiéis, se eleve ao céu a
oração. Possa "a luz que ilumina cada homem que vem a este mundo"
(Jo 1, 9) aclarar-lhes o caminho da salvação; possa a sua graça suscitar no
coração inquieto dos errantes o desejo nostálgico dos bens eternos, desejo
que os induzam a voltar àquele que, do doloroso trono da cruz, tem sede também
das suas almas e deseja ardentemente tornar-se também para elas "caminho,
verdade e vida" (Jo 14, 6).
Agradecimento paterno
7. Pondo esta primeira encíclica do nosso pontificado sob o
sinal de Cristo-Rei, como que nos sentimos inteiramente seguros do consenso
unânime e entusiástico de todo o rebanho do Senhor. As experiências, as
ansiedades e as provações da hora presente despertam, aguçam e purificam o
sentimento de comunidade da família católica num grau raramente experimentado,
excitando em todos os que crêem em Deus e em Jesus Cristo a consciência de uma
ameaça comum por parte de um perigo comum.
8. Deste espírito de comunidade católica, potentemente
acrescido em tão árduas circunstâncias, e que é recolhimento e afirmação,
resolução e vontade de vitória, sentimos o bafejo consolador e inesquecível
naqueles dias em que, hesitantes mas confiados em Deus, tomamos posse da cátedra
que ficara vaga pela morte do nosso grande predecessor.
9. Lembrando-nos ainda das inúmeras provas de filial
acatamento à Igreja e ao Vigário de Cristo, recebidas por ocasião de nossa
eleição e coroação, manifestações cheias de tanta espontaneidade e
ternura, apraz-nos colher esta ocasião propícia para dirigir-vos, veneráveis
irmãos, e a todos os que pertencem à grei do Senhor, uma palavra de comovido
agradecimento por esse pacífico plebiscito de reverente amor e de inconcussa
fidelidade ao papado, com o qual se vinha reconhecer a providencial missão do
sumo sacerdote e do pastor supremo. Pois que, verdadeiramente, todas aquelas
manifestações não eram nem poderiam ser dirigidas à nossa pobre pessoa mas
sim ao único e altíssimo cargo a que o Senhor nos elevava. E se já desde
aquele primeiro momento sentíamos todo o peso das graves responsabilidades
anexas ao sumo poder que nos conferia a divina Providência, também nos era de
grande conforto ver aquela grandiosa e palpável demonstração da
inscindível unidade da Igreja católica que tanto mais compacta se estreita à
inabalável rocha de Pedro, rodeando-a de barbacãs inexpugnáveis, quanto mais
cresce a ousadia dos inimigos de Cristo.
10. Este mesmo plebiscito de unidade católica mundial e de
sobrenatural fraternidade de povos em torno do Pai comum, pareceu-nos tanto mais
rico de felizes esperanças, quanto mais trágicas eram as circunstâncias
materiais e espirituais do momento em que se dava; e a sua recordação nos veio
confortando também nos primeiros meses do nosso pontificado, durante os quais
temos já experimentado as fadigas, as ansiedades e as provações semeadas pelo
caminho que vem palmilhando a esposa de Cristo através do mundo.
11. Não queremos que passe despercebido o grande eco de
comovido reconhecimento que vieram suscitar em nosso coração os augúrios
daqueles que, se bem não pertençam ao corpo visível da Igreja católica, não
se esqueceram, em sua nobreza e sinceridade, de sentir tudo aquilo que, ou por
amor à pessoa de Cristo ou pela sua crença em Deus, os unem a nós. A todos
chegue a expressão da nossa gratidão. Confiamos a todos e cada um em
particular à proteção e guia do Senhor e asseguramos que um único pensamento
domina a nossa mente: imitar os exemplos do bom pastor, a fim de conduzir todos
à verdadeira felicidade; "para que tenham a vida e a tenham
abundantemente" (Jo 10, 10).
A obra providencial dos Pactos Lateranenses
12. Mas o :nossa espírito sente como que imperiosa
necessidade de tornar pública a sua íntima gratidão pelos sinais de
reverente
:homenagem recebidos de soberanos; de chefes de Estado e de
autoridades públicas daquelas
nações que estão em boas relações com a Santa Sé. E uma especial alegria
enche o nosso coração ao podermos, nesta primeira encíclica dirigida a
todo o povo cristão esparso pelo mundo, mencionar em tal número a dileta
Itália, fecundo jardim da fé plantada pelos príncipes dos apóstolos, a
qual, graças à providencial obra dos Pactos Lateranenses,
ocupa hoje um posto de honra entre os Estados oficialmente representados
junto à
Sé Apostólica. Daqueles pactos teve feliz início, como aurora de
tranqüila e
fraternal união de almas diante dos sagrados altares e no consórcio
civil, a
"paz de Cristo restituída à Itália"; paz que suplicamos ao Senhor
conserve, avive, dilate e corrobore fortemente e profundamente na alma
do povo
italiano, tão próximo de nós, e no meio do qual respiramos o mesmo
hálito de
vida; augurando que este povo, tão caro aos nossos predecessores e a
nós, e fiel às suas gloriosas tradições católicas, sinta cada vez mais,
na alta
proteção divina, a verdade das palavras do salmista: "Bem-aventurado o
povo
que tem o Senhor por seu Deus" (Sl 143, 15).
13. E esta desejada nova situação jurídica e espiritual,
criada e sigilada por aquela obra destinada a deixar um sinal indelével na
história da Itália e de todo o orbe católico, nunca se nos deparou tão
grandiosa e unificadora, como quando, do excelso balcão da Basílica Vaticana,
abrimos e levantamos pela primeira vez os nossos braços e a nossa mão para
abençoar Roma, sede do papado e nossa amadíssima cidade natal, a Itália
reconciliada com a Igreja e os povos do mundo inteiro.
O dever do vigário de Cristo
14. Como vigário daquele que, numa hora decisiva, diante do
representante da mais alta autoridade terrena de então, pronunciou a grande
palavra: "Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; quem está pela
verdade, ouve a minha voz" (Jo 18, 37), de nada nos sentimos mais devedores
ao nosso cargo, e também ao nosso tempo, como de, com apostólica firmeza,
"dar testemunho da verdade". Este dever implica necessariamente a
exposição e a refutação dos erros e das culpas humanas que devem ser
conhecidas para que se torne possível a cura: "conhecereis a verdade e a
verdade vos tornará livres" (Jo 8, 32). No cumprimento deste nosso dever,
não nos deixaremos influenciar por considerações terrenas, nem nos deteremos
diante de difidências e contrastes, de recusas e incompreensões, nem diante
do temor de desprezos e falsas interpretações. Animar-nos-á sempre aquela
paternal caridade que, enquanto sofre pelos males que afligem seus filhos, não
deixará de indicar-lhes o remédio, esforçando-nos por imitar o divino modelo
dos Pastores, o Bom Pastor Jesus Cristo que é, a um tempo, luz e amor:
"Seguindo a verdade com amor" (Ef 4, 15).
15. No início da caminhada que leva à indigência
espiritual e moral dos tempos presentes, estão os esforços nefastos de não
poucos para destronar Cristo, o desapego da lei da verdade, que ele anunciou, da
lei do amor, que é o sopro vital do seu reino. O reconhecimento dos direitos
reais de Cristo e a volta de cada um e da sociedade à lei da sua verdade e de
seu amor são o único caminho de salvação.
16. Enquanto escrevemos estas linhas, veneráveis irmãos,
chega-nos a apavorante notícia que se desencadeara o terrível tufão da
guerra, não obstante todos os nossos esforços para esconjurá-lo. A nossa
caneta como que hesita em prosseguir, quando imaginamos o abismo de sofrimentos
de inúmeras pessoas, às quais sorria ainda ontem, no ambiente doméstico, um
raio de modesto bem-estar. O nosso coração enche-se de angústia, ao prevermos tudo o que poderá medrar da tenebrosa semente da
violência e do ódio, depositada hoje nesses sulcos sangüinosos que a espada
acaba de abrir: Mas, mesmo diante destas apocalípticas previsões de
desventuras iminentes e futuras, achamos que é nosso dever sugerir àqueles em
cujos corações se aninha ainda um sentimento de boa vontade, que elevem os
olhos ao único do qual deriva a salvação do mundo, ao único; cuja mão
onipotente e misericordiosa pode fazer cessar esta tempestade, ao único, cuja
verdade e cujo amor podem iluminar as inteligências e inflamar os corações de
tão grande parte da humanidade imersa no erro, no egoísmo, nos contrastes e na
luta, e reorganizá-la no espírito da realeza de Cristo.
17. Talvez nos sej a lícito esperar – e Deus o permita –
que
esta hora de máxima indigência seja também uma hora de retificação do
pensar e sentir de muitos que até agora palmilhavam, com cega confiança,
o
caminho semeado de erros modernos, sem suspeitarem quão insidioso e
falso era o
terreno que pisavam. Muitos talvez, que não compreendiam a importância
da missão da Igreja, perceberão melhor agora os seus avisos, por eles
descurados
na falsa segurança de tempos passados. As angústias do presente são uma
apologia do cristianismo, e não poderia ser mais impressionante. Do
gigantesco
vórtice de erros e movimentos anticristãos originaram-se frutos tão
amargos
que constituem uma condenação, cuja eficácia supera qualquer confutação
teórica.
18. Horas de tão penosa desilusão são muitas vezes horas
de graça, uma "passagem: do Senhor" (Ex 12, 11) nas quais; à palavra
do Salvador: "Eis que estou à porta,e bato" (Ap 3, 20) abrem-se as
portas que, de outra maneira, se conservariam fechadas. Bem sabe Deus com que
amor comipassivo, com que santa alegria o nosso coração se volta para aqueles que, em meio de tão dolorosas
experiências, sentem nascer em si o imperioso e salutar desejo da verdade, da
justiça e da paz de Cristo. Mas também por aqueles que aguardam ainda a luz
superna que os ilumine, o nosso coração não conhece senão amor, e de nossos
lábios não se desprendem senão preces ao Pai das luzes pedindo-lhe que faça
resplandecer em suas almas, indiferentes ou inimigas de Cristo, um raio daquela
luz que transformou um dia Saulo em Paulo, daquela luz que demonstrou sempre a
sua força misteriosa mesmo nos tempos mais difíceis para a Igreja.
Os erros dos tempos presentes
19. Uma atitude bem definida, doutrinal e completa, contra os
erros dos tempos presentes poderá ser adiada, se for preciso, para uma época
menos agitada pelas desgraças dos acontecimentos externos; por ora limitar-nos-emos a algumas
observações fundamentais.
20. A época atual, veneráveis irmãos, acrescentando novos
erros aos desvios doutrinais do passado, levou-os a extremos dos quais se não
podia originar senão desorientamento e ruína. E antes de tudo, é certo que a
raiz profunda e última dos males que deploramos na sociedade moderna é a
negação e repulsa de uma norma de moralidade universal, quer na vida
individual, quer na vida social e das relações internacionais, isto é, o
desconhecimento, tão difundido nos nossos tempos, e o esquecimento da própria
lei natural, que tem o seu fundamento em Deus, criador onipotente e Pai de
todos, legislador supremo e absoluto, onisciente e justo vingador das ações
humanas. Quando se renega Deus, abala-se toda a base de moralidade; sufoca-se
ou, pelo menos, debilita-se de muito a voz da natureza, que ensina, até aos
iletrados e às tribos ainda alheias à civilização, o que é bem e o que é mal, o que é lícito e o que é ilícito, e faz sentir a
responsabilidade das próprias ações perante o Juiz supremo.
21. Pois bem, a negação da base fundamental da moralidade
teve, na Europa, a sua raiz originária no afastamento daquela doutrina de
Cristo, de que é depositária e mestra a cátedra de são Pedro; doutrina que,
em tempos idos, dera certa coesão espiritual à Europa, a qual, educada,
enobrecida e civilizada pela cruz, chegara a tal grau de progresso civil que a
fizera mestra de outros povos e de outros continentes. Afastando-se, ao invés,
do magistério infalível da Igreja, não poucos chegaram até a subverter o
dogma central do cristianismo, a divindade do Salvador, acelerando assim o
processo de dissolvimento espiritual.
Indícios de paganismo
22. Narra o santo evangelho que, ao crucificarem Jesus,
"escureceu-se toda a terra" (Mt 27, 45); pavoroso símbolo do
que
acontece e continua a acontecer espiritualmente onde a incredulidade,
cega e
orgulhosa de si mesma, exclui Cristo da vida moderna, especialmente da
vida
pública, e abalando a fé em Cristo abala também a fé em Deus. E por
conseguinte, os valores morais, pelos quais em outros tempos se julgavam
as ações privadas e públicas, acaram como que em desuso. A tão
decantada
laicização da sociedade, que tem feito progressos cada vez mais rápidos,
subtraindo o homem, a família e o Estado ao benéfico e regenerador
influxo da idéia de Deus e do ensino da Igreja, fez ressurgir, em
regiões onde por
espaço de tantos séculos brilharam os fulgores da civilização cristã,
indícios, cada vez mais claros, mais distintos e angustiosos de um
paganismo
corrompido e corruptor: "Quando crucificaram Jesus obscureceu-se toda a
terra".
23. Muitos talvez, ao se afastarem da doutrina de Cristo,
não tiveram plena consciência de serem enganados pela falsa miragem de frases
brilhantes que proclamavam tal afastamento como um libertar-se da escravidão a
que julgavam estar antes sujeitos; nem previam as amargas conseqüências da
triste permuta entre a verdade, que liberta, e o erro que escraviza; nem
pensavam que, renunciando à infinitamente sábia e paternal lei de Deus e à
unificadora e nobre doutrina de amor de Cristo, se entregavam ao arbítrio de
uma pobre e mutável sabedoria humana. Falavam de progresso quando retrocediam;
de elevação, quando se degradavam; de ascensão ao amadurecimento, quando
caíam na escravidão; não percebiam a vaidade de todo o esforço humano em
substituir a lei de Cristo por alguma outra coisa que a igualasse:
"tornaram-se fátuos nos seus arrazoados" (Rm 1, 21).
24. Enfraquecida a fé em Deus e em Jesus Cristo, ofuscada
nos ânimos a luz dos princípios morais, fica a descoberto o único e
insubstituível alicerce daquela estabilidade e tranqüilidade, daquela ordem
externa, e interna, privada e pública, única que pode gerar e salvaguardar a
prosperidade dos Estados.
25. É verdade também que nos tempos em que a Europa se
irmanara com ideais idênticos recebidos da pregação cristã, não faltaram
dissídios, desordens e guerras que a desolaram; mas talvez nunca se tenha
experimentado tão agudamente o desalento dos nossos dias sobre a possibilidade
de conciliação; viva era então a consciência do justo e do injusto, do
lícito e do ilícito, que facilita os entendimentos, enquanto freis o
desencadear das paixões e deixa aberta a via a um honesto acordo. Nos nossos
dias, ao contrário, os dissídios provêm não somente do ímpeto de paixões
rebeldes, mas de uma profunda crise espiritual que subverte os sãos princípios
da moral privada e pública.
II. O ESQUECIMENTO DA LEI DA CARIDADE
26. Entre os multíplices erros derivados da fonte envenenada do agnosticismo religioso e moral, queremos chamar a vossa atenção,
veneráveis irmãos, para dois de modo especial, que são, a bem dizer, os que
tornam quase impossível, ou ao menos precária e incerta, a convivência
pacífica dos povos.
27. O primeiro desses erros perniciosos, hoje largamente
difundidos, é o esquecimento daquela lei de caridade e solidariedade humana,
sugerida e imposta, quer pela identidade de origem, e pela igualdade da natureza
racional em todos os homens, sem distinção de povos, quer pelo sacrifício da
redenção oferecido por Jesus Cristo sobre a cruz ao Pai celeste em favor da
humanidade pecadora.
28. De fato, logo na primeira página, narra-nos a Escritura
com grandiosa simplicidade que Deus, para coroar a sua obra criadora, fez o
homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26-27); e diz-nos a mesma Escritura que
o enriqueceu de dons e privilégios sobrenaturais, destinando-o a uma eterna e
inefável felicidade. Mostra-nos, além disso, como do primeiro casal tiveram
origem os outros homens, dando-nos a seguir, com insuperável plasticidade de
linguagem, a divisão em vários grupos e a sua dispersão pelas diversas partes
do mundo. Mesmo quando se afastaram do seu Criador, Deus continuou a
considerá-los como filhos que, segundo o seu misericordioso desígnio, deveriam
um dia gozar ainda da sua amizade (Gn 12, 3).
29. O Apóstolo das gentes faz-se depois arauto desta
verdade, que irmana os homens numa grande família, quando anuncia ao povo grego
que Deus "tirara de um único tronco toda a progênie dos homens, para que
povoassem toda a superfície da terra, e determinara o curso da sua
existência e os limites das suas habitações, a fim de que procurassem o
Senhor" (At 17, 26). Maravilhosa visão que nos faz contemplar o gênero
humano na unidade de uma origem comum em Deus: um só "Deus e Pai de todos,
aquele que está acima de todos, por todos e em todos" (Ef 4, 6): na
igualdade de natureza, igualmente constituída em todos de corpo material e alma
espiritual e imortal; na unidade do fim imediato e da sua missão no mundo; na
unidade de habitação, a terra, de cujos bens, por direito natural, todos os
homens podem valer-se a fim de sustentar e desenvolver a vida; na unidade do fim
sobrenatural, o próprio Deus, a que todos devem tender; na unidade dos meios
para conseguir tal fim.
30. E o mesmo Apóstolo mostra-nos a humanidade na unidade de
relações com o Filho de Deus, imagem do Deus invisível, no qual foi criado
tudo o que existe; na unidade do resgate de todos operado por Cristo que,
fazendo-se mediador entre Deus e os homens, mediante sua santa e acerbíssima
paixão restituíra à humanidade a primitiva amizade de Deus: "Pois há um
só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus"
(1 Tm 2, 5).
31. E para tornar mais íntima tal amizade entre Deus e a
humanidade, este mesmo mediador divino e universal de salvação e de paz, no
sagrado silêncio do Cenáculo, antes de consumar o sacrifício supremo, deixou
cair de seus lábios divinos a palavra que vem sendo repetida no correr dos
séculos, suscitando ao mesmo tempo heroísmos de caridade em meio de um mundo
vazio de amor e dilacerado pelo ódio: "Eis o meu mandamento: amai-vos uns
aos outros, como eu vos amei" (Jo 15, 12).
32. Verdades sobrenaturais estas, que estabelecem bases
profundas e solidíssimos vínculos de união, reforçados pelo amor de Deus e do divino Redentor, do qual recebem
todos a saúde "pela edificação do corpo de Cristo, até que cheguemos
todos a unidade da fé, ao pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado do
homem perfeito, segundo a medida da plenitude de Cristo" (Ef 4, 12-13).
33.
À luz desta unidade de direito e de fato de toda a humanidade, os indivíduos
não nos aparecem desligados entre si, como grãos de areia; mas sim unidos por
relações, diversas com o variar dos tempos, mas orgânicas, harmoniosas e
mútuas, por natural e sobrenatural destino e impulso. E os povos, evoluindo e
diferenciando-se segundo as diversas condições de vida e de cultura, não são
destinados a quebrar a unidade do gênero humano, mas sim a enriquecê-lo e
aformoseá-lo, com a comunicação dos seus dotes peculiares e com aquela
recíproca permuta dos bens, possível e ao mesmo tempo eficaz somente quando um
mútuo amor e uma caridade vivamente sentida venha unir todos os filhos do mesmo
Pai e todos os redimidos pelo mesmo sangue divino.
34. A Igreja de Cristo, fidelíssima depositária de uma
sabedoria divina e educativa, não pode cogitar nem cogita em criticar ou
menosprezar as características especiais que cada povo guarda, com ciosa
devoção e compreensível ufania, e considera como patrimônio precioso.
O seu
escopo é a unidade sobrenatural no amor universal, sentido e praticado, e
não
a uniformidade, exclusivamente exterior, superficial, e por isso mesmo
debilitante. A Igreja saúda jubilosa e acompanha com seus votos
maternais todas
as diretrizes e solicitudes que visem a criterioso e ordenado
desenvolvimento de
forças e tendências particulares e têm suas raízes nos mais recônditos
escaninhos de cada estirpe, contanto que não contrastem com os deveres
da
humanidade derivados da unidade de origem e comum destino. Na sua
atividade
missionária, a Igreja vem afirmando repetidamente que tal norma é a
estrela polar
do seu apostolado universal. Inúmeras pesquisas e investigações de
pioneiros,
realizadas com sacrifício, amor e dedicação pelos missionários de todos
os
tempos, propunham-se facilitar a compreensão interior e o respeito das
diversas
formas de civilização, e tornar fecundos os valores espirituais por meio
da
pregação viva e vital do evangelho de Cristo. Tudo o que em tais usos e
costumes não seja indissoluvelmente ligado a erros religiosos, será
sempre
benevolamente examinado, e quando possível, promovido e tutelado. E o
nosso
imediato predecessor, de santa e veneranda memória, ao aplicar tais
normas a
uma questão de singular delicadeza, tomou decisões generosas que
elevaram um
monumento à vastidão do seu intuito e ao ardor do seu espírito
apostólico.
É escusado dizer-vos, veneráveis irmãos, que entendemos prosseguir por
esta
via sem a menor hesitação. Todos aqueles que passam a fazer parte da
Igreja,
qualquer seja a sua origem ou língua, devem saber que têm igual direito
de
filhos na casa do Senhor, onde impera a lei e a paz de Cristo. De acordo
com
estas normas de igualdade, a Igreja consagra as suas solicitudes à
formação
de numeroso clero indígena e ao aumento gradual do episcopado indígena. E
para
dar uma prova destas nossas intenções, escolhemos a iminente festa de
Cristo-Rei para elevar à dignidade episcopal sobre o túmulo do príncipe
dos
apóstolos, doze representantes de diversos povos e estirpes.
35. Entre os dilacerantes contrastes que dividem a família
humana, possa este ato solene proclamar a todos os nossos filhos, esparsos pelo
mundo, que o espírito, o ensino e a obra da Igreja nunca poderão ser diversos
daquilo que pregava o Apóstolo das gentes: "E vos revestistes do homem
novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador. Aí não há mais grego e
judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro; cita, escravo, livre, mas Cristo é
tudo e em todos" (Cl 3, 10-11).
O amor cristão da pátria
36. Nem se deve recear que a consciência da fraternidade
universal, fomentada pela doutrina cristã, e o sentimento que ela inspira,
estejam em contraste com o amor às tradições e glórias da própria pátria,
ou impeçam que se promovam a prosperidade e os interesses legítimos, porquanto
essa mesma doutrina ensina que existe uma ordem estabelecida por Deus no
exercício da caridade, segundo a qual se deve amar mais intensamente e auxiliar
de preferência os que estão a nós unidos com vínculos especiais. E o divino
Mestre deu também exemplo dessa preferência pela sua pátria, chorando sobre
as ruínas da Cidade Santa. Mas o legítimo e justo amor à própria pátria
não deve excluir a universalidade da caridade cristã que faz considerar
também aos outros e a sua prosperidade, na luz pacificadora do amor.
37. Tal é a maravilhosa doutrina de amor e de paz, que tão
nobremente tem contribuído para o progresso civil e religioso da humanidade. E
os arautos que, movidos por caridade sobrenatural, a anunciaram, não só
arrotearam terrenos e curaram enfermidades, mas bonificaram, plasmaram e
elevaram a vida a alturas divinas, impelindo-a para os cimos da santidade, que
faz contemplar tudo à iuz de Deus. Elevaram monumentos e templos que demonstram
a que geniais alturas conduz o ideal cristão, mas sobretudo transformaram os
homens, sábios ou ignorantes, poderosos ou fracos, em templos vivos de Deus e
ramos da mesma videira, Cristo. Transmitiram às gerações futuras os tesouros
de arte e sabedoria antiga, não só, mas tornaram-nas participantes daquele
inefável dom da sabedoria eterna, que irmana e une os homens com vínculo
de sobrenatural dependência.
III. O DIREITO HUMANO E O DIREITO DIVINO
38. Veneráveis irmãos, se o esquecimento da lei de caridade
universal, única que pode consolidar a paz, apagando os ódios e atenuando os
rancores e contrastes, é causa de gravíssimos males à convivência pacífica
dos povos, não menos nocivo ao bem-estar e à prosperidade da sociedade humana,
que reúne e abraça dentro dos seus confins todos os povos, se mostra o erro
contido naquelas concepções que não hesitam em dispensar a autoridade civil
de toda e qualquer dependência do Ente supremo, causa primeira e Senhor
absoluto tanto do homem como da sociedade, e de todo o liame de lei
transcendente, que deriva de Deus como de fonte primária, e lhe concedem uma
ilimitada faculdade de ação, abandonada à onda inconstante do arbítrio ou
tão-somente aos ditames de exigências históricas contingentes e de interesses
relativos.
39. Renegada assim a autoridade de Deus e o império da sua
lei, o poder civil, por conseqüência inevitável, tende a atribuir a si aquela
absoluta autonomia que compete ao Autor Supremo; a substituir-se ao Onipotente;
elevando o Estado ou a coletividade a fim último da vida; a critério sumo da
ordem moral e jurídica, e interdizendo dessa maneira todo o apelo aos
princípios da razão natural e da consciência cristã.
40. Bem sabemos, na verdade, que os princípios errados,
felizmente, nem sempre exercem toda a sua influência; principalmente quando as
tradições cristãs, várias vezes seculares, de que se nutriram os povos,
permanecem ainda, profundamente arraigadas nos corações, ainda que inconscientemente. É preciso, todavia, ter presente a
essencial insuficiência e fragilidade de toda a norma de vida social, que
repouse sobre alicerce exclusivamente humano, que se inspire em motivos
exclusivamente terrenos e ponha a sua força na sanção de uma autoridade
simplesmente exterior.
41. Onde se nega a dependência do direito humano do
direito
divino, onde não se apela senão para uma idéia mal segura de autoridade
meramente terrena, onde se reivindica uma autonomia fundada apenas numa
moral
utilitária, ali o próprio direito humano perde justamente, nas suas
aplicações mais gravosas, a sua força moral, que é a condição essencial
para ser reconhecido e para exigir sacrifícios, se forem precisos.
42. É verdade também que o poder assim alicerçado em base
tão frágil e oscilante, mercê de circunstâncias contingentes, pode às vezes
conseguir sucessos materiais que assombram observadores não muito profundos;
mas há de chegar a hora em que triunfará a lei inelutável que fere tudo o que
tenha sido construído sobre uma latente ou clara desproporção entre a
grandeza do êxito material e exterior e a fraqueza do valor interior e da sua
base moral. Desproporção que subsiste sempre quando a autoridade pública
desconhece ou renega o domínio do sumo legislador que, se dá o poder aos
governantes, não deixa de assinalar-lhes e determinar-lhes os limites.
A tarefa do Estado
43. Quer o Criador que exista a soberania civil, como afirmou
sapientemente o nosso grande predecessor Leão XIII na encíclica
Immortale
Dei, para que regule a vida social de acordo com as prescrições de uma ordem imutável
nos seus princípios universais, para que torne mais fácil à pessoa humana, na
ordem temporal, alcançar a perfeição física, intelectual e moral, e para que
a ajude a conseguir o fim sobrenatural.
44. Nobre prerrogativa e missão do Estado é, pois, o
fiscalizar, auxiliar e ordenar as atividades particulares e individuais da vida
nacional, fazendo-as convergir harmonicamente para o bem comum, que não pode
ser determinado por concepções arbitrárias, nem pode receber a sua norma
primariamente da prosperidade material da sociedade, mas sim do desenvolvimento
harmônico e da perfeição natural do homem, a quem, como meio, é pelo Criador
destinada a sociedade.
45. Considerar o Estado como fim a que tudo deve ser dirigido
e subordinado, seria o mesmo que prejudicar a verdadeira e duradoura
prosperidade das nações. E dá-se isso quando tal domínio ilimitado seja
atribuído ao Estado, como mandatário da nação, do povo ou até de uma
classe, ou quando o Estado o pretende, como senhor absoluto, independentemente
de qualquer mandato.
46. Com efeito, se o Estado se arroga e dispõe das
iniciativas privadas, estas, que são governadas por delicadas e complexas
normas internas, que garantem e asseguram alcançar o fim que lhes é próprio,
vêem-se danificadas com desvantagem do bem público, por serem destacadas do
seu ambiente natural, ou seja da responsabilidade ativa particular.
47. Também a primeira e essencial célula da sociedade, a
família, com o seu bem-estar e desenvolvimento, correria então o risco de ser
considerada pertença exclusiva do poder nacional, esquecendo-se assim que o
homem e a família são, por natureza, anteriores ao Estado e que a
ambos deu o Criador forças e direitos, comando-lhes também uma missão
correspondente às incontestáveis exigências naturais de cada um.
48. A educação das novas gerações não visaria à
desenvolvimento equilibrado e harmônico das forças físicas e de todas as
qualidades intelectuais e morais, mas sim à formação unilateral daquelas
virtudes cívicas julgadas necessárias para alcançar sucessos políticos; ao
contrário deixariam de ser inculcadas aquelas virtudes que dão à sociedade o
perfume de nobreza, de humanidade e de respeito, como se elas diminuíssem o
brio do cidadão.
Os direitos da família
49. Diante dos nossos olhos aparecem em toda a sua
dolorosa
clareza os perigos que tememos possam advir a esta geração e às gerações
futuras, do desconhecimento, da diminuição e da progressiva abolição dos
direitos próprios da família. Por isso é que nos erguemos em defensores
de
tais direitos, com plena consciência do dever que nos impõe o nosso
ministério apostólico. As angústias dos nossos tempos, tanto interiores
como
exteriores, tanto materiais como espirituais, os multíplices erros com
suas
inúmeras repercussões, se há alguém que os experimenta amarissimamente é
a
minúscula e nobre célula familiar. E preciso, às vezes, grande coragem
e, na
sua simplicidade, heroísmo digno de grande admiração e respeito, para
suportar as durezas da vida, o peso cotidiano das misérias, as
indigências e
estreitezas que crescem em medida jamais experimentada; e por vezes sem
razão
nem necessidade: Quem se ocupa das almas e recebe as confidências dos
corações, bem conhece as furtivas lágrimas de muitas mães, a dor
resignada
de inúmeros pais, e as muitas amarguras, que nenhuma estatística cita
nem
poderá citar, vê com verdadeira preocupação crescerem sempre mais esses
sofrimentos, bem sabendo que as potências da subversão e destruição
estão
vigilantes e prontas a servir-se disso para os seus tenebrosos
desígnios.
50. Quem tenha um pouco de boa vontade e olhos abertos não
poderá por certo recusar ao Estado, nas circunstâncias extraordinárias em que
se acha o mundo, um direito mais amplo e excepcional para acudir às
necessidades do povo. Mas a ordem moral, por Deus estabelecida, exige também em
tais contingências que se indague com maior sutileza e seriedade se tais
providências são realmente necessárias, segundo as normas do bem comum.
Os direitos da consciência
51. Em todo o caso, quanto mais onerosos são os
sacrifícios
materiais pelo Estado, exigidos dos indivíduos e das famílias, tanto
mais
sagrados e invioláveis devem ser os direitos das consciências. Poderá
pretender bens e sangue, nunca porém a alma por Deus redimida. A missão
que
Deus confiou aos pais de se interessarem pelo bem material e espiritual
da sua
prole e de dar a ela uma formação harmônica e repassada de verdadeiro
espírito religioso, não lhes poderá ser arrebatada sem grave lesão do
direito. Esta formação deve certamente ter por finalidade também
preparar a
juventude para cumprir com inteligência, consciência e galhardia aqueles
deveres de patriotismo que dá à pátria terrestre a devida medida de
amor, de
dedicação e colaboração. Mas por outra parte, uma formação que se
esqueça, ou, o que é pior ainda, propositalmente descure de dirigir os
olhos e
o coração da juventude para a pátria sobrenatural, seria uma injustiça
contra a juventude, uma injustiça contra os inalienáveis deveres e
direitos da família
cristã, um excesso a que
se deve remediar também em favor do bem público e do Estado. Semelhante
educação poderia parecer àqueles que por ela são responsáveis, fonte de
maior força e vigor; na realidade seria o contrário e as tristes
conseqüências encarregar-se-iam de prová-lo. O delito de lesa majestade
contra o "Rei dos reis e o Senhor dos dominadores" (1 Tm 6, 15;
Ap
19, 16) perpetrado por uma educação indiferente ou contrária ao espírito
cristão, a inversão do "deixai que as crianças venham a mim" (Mc
10, 14) acarretaria amaríssimos frutos. Ao contrário, o Estado que tira aos
dilacerados corações dos pais e das mães as suas preocupações e restabelece
os seus direitos, mais não faz do que promover a própria paz interna e lançar
as bases de um futuro mais feliz para a pátria. As almas dos filhos que Deus deu
aos pais, assinaladas no batismo com o selo real de Cristo, são um depósito
sagrado por Deus vigiado com cioso amor. O mesmo Crispo que disse "deixai
que as crianças venham a mim", ameaçou também, não obstante sua bondade
e misericórdia, terríveis males àqueles que escandalizam os prediletos do seu
coração. E que escândalo mais nocivo e duradouro às gerações do que uma
formação da juventude dirigida para uma meta que afasta de Cristo,
"caminho, verdade e vida", levando-a a uma simulada ou manifesta
apostasia? Este Cristo do qual querem alienar as gerações juvenis presentes e
futuras, é o mesmo que recebeu do seu eterno Pai o poder no céu e na terra. Em
sua mão onipotente tem ele o destino dos Estados, dos povos e das nações. A
ele compete diminuir-lhes ou prolongar-lhes a vida, o desenvolvimento, a
prosperidade e a grandeza. De tudo o que existe sobre a terra, somente a alma
tem vida imortal. Um sistema de educação que não respeitasse o recinto
sagrado da família, protegido pela santa lei de Deus, que procurasse minar-lhe
os alicerces, que fechasse à juventude o caminho que conduz a Deus, às fontes de vida e de alegria do
Salvador (Is 12, 3), que considerasse o apostatar Cristo e a Igreja como símbolo
de fidelidade ao povo ou a uma determinada classe, pronunciaria contra si mesmo
a sentença de condenação, e experimentaria, a seu tempo, a inelutável
verdade das palavras do profeta: "Aqueles que se afastam de ti serão
escritos na terra" (Jr 17, 13).
Leis morais supremas
52. A concepção que atribui ao Estado uma autoridade
ilimitada, veneráveis irmãos, não é somente um erro pernicioso à vida
interna das nações, à sua prosperidade e ao maior incremento do seu
bem-estar, mas prejudica também as relações entre os povos, rompendo a
unidade da sociedade supernacional, tirando a base e o valor ao direito das
gentes, abrindo caminho à violação dos direitos alheios e tornando difícil o
acordo para a convivência pacífica.
53. Embora o gênero humano, por disposição de ordem
natural estabelecida por Deus, esteja dividido em grupos sociais, nações ou
Estados, independentes uns dos outros, no que respeita ao modo de organizar e
dirigir a sua vida interna, acha-se, contudo, ligado por recíprocos vínculos
morais e jurídicos, numa grande comunidade, organizada para o bem de todos os
povos e regulada por leis especiais que tutelam a sua unidade e promovem a sua
prosperidade.
54. Ora, não há quem não perceba que a autonomia absoluta
do Estado põe-se em aberto contraste com esta lei imanente e natural, ou melhor
nega-a radicalmente, deixando à mercê da vontade dos governantes a
estabilidade das relações internacionais e tirando a possibilidade de uma
verdadeira união e fecunda colaboração no que respeita ao interesse geral.
Porque, veneráveis irmãos, para a existência de contatos harmônicos e duradouros e de
relações frutuosas, é indispensável que os povos reconheçam e observem
aqueles princípios de direito natural internacional, que regulam o seu normal
funcionamento e desenvolvimento. Tais princípios exigem o respeito dos
relativos direitos à independência, à vida e à possibilidade de um
desenvolvimento progressivo no caminho da civilização; exigem, além disso, a
fidelidade aos pactos estipulados e ratificados segundo as normas do direito das
gentes.
55. Não há dúvida que o pressuposto indispensável de toda
a convivência pacífica entre os povos e a alma das relações jurídicas, em
vigor entre eles, é a mútua confiança, a previsão e persuasão da recíproca
fidelidade à palavra dada, a certeza de que tanto de uma parte como de outra
existe a convicção de que "é preferível a sabedoria às armas
guerreiras" (Ecl 9, 18) e que se está disposto a discutir e a não recorrer
à força ou a ameaça da força quando surgissem tardanças, impedimentos,
alterações e contendas, coisas que podem ter a sua origem não na má vontade,
mas sim em circunstâncias que se modificaram ou interesses que se contrastam.
56. Mas, por outra parte, destacar o direito das gentes da
âncora do direito divino, para ligá-lo à vontade autônoma dos Estados, é o
mesmo que destronar esse direito e tirar-lhe os títulos mais nobres e válidos,
para abandoná-lo à infausta dinâmica do interesse privado e do egoísmo
coletivo, no intuito de fazer valer os próprios direitos desconhecendo ao mesmo
tempos os dos outros.
Orgulhosas ilusões
57. E também verdade que, com o passar do tempo e a mudança
substancial das circunstâncias, não previstas e talvez nem sequer previsíveis
no ato da estipulação, um tratado ou algumas das suas cláusulas podem tornar-se ou
parecer injustas, inatualizáveis ou muito onerosas a uma das partes; é claro
que, se isso acontecesse, dever-se-ia proceder oportunamente a uma discussão
leal para modificar ou substituir o tratado. Mas considerar os pactos, por
princípio, como efêmeros e arrogar-se tacitamente a faculdade de rescindi-los
unilateralmente quando não convenham mais, seria o mesmo que anular a
confiança recíproca entre os Estados. Mutilar-se-ia assim a ordem natural,
cavando-se ao mesmo tempo entre as nações lamentáveis abismos de separação.
58. Hoje, veneráveis irmãos, todos contemplam com terror o
abismo a que levaram os erros por nós caracterizados e as suas conseqüências
práticas. Ruíram por terra as orgulhosas ilusões de um progresso indefinido;
e os que ainda cochilassem seriam despertados, na trágica época que
atravessamos, com as palavras do profeta: "Ouvi, ó surdos, e vede ó
cegos" (Is 42,18). O que exteriormente parecia ordem, não era senão uma
invasão perturbadora e desbarato das normas de vida moral as quais, destacadas
da majestade da lei divina, haviam contaminado todos os campos da atividade
humana. Mas deixemos o passado e lancemos os nossos olhares para o futuro que,
segundo o que prometem os poderosos deste mundo, apenas cessados os hodiernos e
sangüinolentos encontros, consistirá numa nova reorganização do mundo,
fundada na justiça e na prosperidade. Será verdadeiramente diferente tal
futuro? Será sobretudo melhor? No fim desta guerra, serão os tratados de paz e
a nova ordem internacional animados de justiça e eqüidade para com todos?
Serão animados daquele espírito que liberta e pacifica, ou serão uma
lamentável repetição dos erros antigos e recentes? Coisa vã e demonstrada
pela experiência, seria esperar uma mudança radical exclusivamente do encontro bélico. A hora da vitória é sempre uma hora de um
triunfo exterior por parte de quem a consegue; mas é, ao mesmo tempo, a hora da
tentação, na qual o anjo da justiça luta com o demônio da violência. O
coração do vencedor endurece-se muito facilmente; a moderação e uma
longividente sabedoria deparam-se-lhe como fraqueza; a exaltação das paixões
populares, incitada pelos sacrifícios e sofrimentos suportados, vela muitas
vezes os olhos dos responsáveis e faz-lhes desprezar a voz admoestadora da
humanidade e da eqüidade, sobrepujada ou aniquilada pelo inumano: "ai dos
vencidos!" Resoluções e decisões nascidas em tais circunstâncias
arriscam-se sempre a serem injustas se bem cobertas com o manto da justiça.
Energias renovadoras
59. Não, veneráveis irmãos, a salvação dos povos não
pode vir dos meios externos; a espada que é capaz de impor condições de
paz,
não pode criar a paz. As energias que devem renovar a face da terra
devem
partir do interior, do espírito. A nova organização do mundo, da vida
nacional e internacional, quando cessarem as amarguras e as cruéis lutas
hodiernas, não deverá repousar mais na areia movediça das normas
mutáveis e
efêmeras, deixadas ao arbítrio do egoísmo coletivo e individual. Devem
elas
antes erguer-se sobre sólida base, sobre a rocha inabalável do direito
natural
e da revelação divina. Dali deverá o legislador humano atingir aquele
espírito de equilíbrio, aquele apurado senso de responsabilidade moral,
sem o
que é fácil desconhecer os limites entre o legítimo uso e o abuso do
poder. Tão-somente assim as suas decisões poderão ter consistência
interna, nobre
dignidade e sanção religiosa, e não ficarão à mercê do egoísmo e da
paixão. Porquanto, se é verdade que os males sofridos hoje pela
humanidade,
procedem, em parte do desequilíbrio econômico e da luta dos interesses,
no intuito de alcançar uma distribuição mais
équa dos bens que
Deus concedeu ao homem como meios do seu sustento e progresso, verdade é
também que eles têm a sua raiz muito mais profunda a tocar nas crenças
religiosas e nas convicções morais, pervertidas pelo progressivo
afastamento
dos povos da unidade de doutrina e de fé, de costumes e de moral,
promovida um
dia pela obra indefessa e benéfica da Igreja. A reeducação da
humanidade,
para ter qualquer resultado positivo, deverá ser sobretudo espiritual e
religiosa; deverá, portanto, partir de Cristo, sua base indispensável,
deverá
ser atuada pela justiça e coroada pela caridade.
A tarefa materna da Igreja
60. Realizar esta obra de regeneração, adaptando os seus
meios às modificadas condições dos tempos e às novas necessidades do gênero
humano, eis a tarefa essencial e materna da Igreja. Agregação do Evangelho,
imposta pelo seu divino fundador, em que se inculca aos homens a verdade, a
justiça e a caridade, e o esforço para arraigar nas almas e nas consciências
os seus preceitos, eis também o trabalho mais nobre e frutuoso em favor da paz.
A grandiosidade de tal missão quase que esmorece os corações daqueles que
fazem parte da Igreja militante. Mas o empenhar-se para que seja difundido o
reino de Deus, coisa que cada século procurou realizar de vários modos, com
diversos meios e não poucas e duras lutas, é um dever imposto a todo aquele
que a graça divina arrancou das garras de Satanás e que com o batismo elegeu
cidadão daquele reino. E se o pertencer a esse reino, o viver segundo o seu
espírito, o trabalhar pelo seu incremento e o tornar acessíveis os seus bens
também àquela porção da humanidade que ainda dele não faz parte, equivale
em nossos dias a dever afrontar oposições vastas e tenazes e minuciosamente
organizadas, isso a ninguém dispensa da franca e corajosa procissão de fé, mas antes deve
incitar a ser firme na luta, também a custo dos maiores sacrifícios. Quem vive
do espírito de Cristo não se deixa abater pelas dificuldades que lhe vêm ao
encontro, mas sente-se como que impelido a empregar todas as suas forças com
plena confiança em Deus; não se esquiva às estreitezas e necessidades da
hora, mas afronta as suas asperezas, pronto sempre a socorrer com aquele amor
que não poupa sacrifícios; é mais forte que a própria morte e não se deixa
levar pelas impetuosas águas da tribulação.
61. Diariamente elevamos a Deus o nosso humilde e profundo
agradecimento, veneráveis irmãos, pelo íntimo conforto e celeste alegria que
nos proporciona observar em todas as partes do mundo católico sinais evidentes
de um espírito que afronta corajosamente os gigantescos encargos da época
presente e que, generosa e decididamente, tende a reunir em fecunda harmonia o
primeiro e essencial dever da própria santificação e a atividade apostólica
para a difusão sempre maior do reino de Cristo. Do movimento dos congressos
eucarísticos promovidos com amorosa solicitude pelos nossos predecessores, da
colaboração dos leigos formados na Ação católica e da profunda consciência
da sua nobre missão, derivam fontes de graças e reservas de forças, que
dificilmente se poderiam estimar como merecem, tanto delas necessitamos nos
tempos atuais em que aumentam as ameaças, enquanto arde a luta entre o
cristianismo e o anticristianismo.
IV. O TRABALHO APOSTÓLICO DOS LEIGOS
62. Quando contemplamos com tristeza a desproporção entre o
número dos sacerdotes e os encargos que lhes tocam, quando vemos verificar-se
ainda hoje a palavra do Salvador: "a messe é imensa e os operários são
poucos" (Mt 9, 37; Lc 10, 2), a colaboração dos leigos no apostolado
hierárquico, numerosa e animada de ardente zelo e de generosa dedicação,
depara-se-nos um precioso auxílio à obra dos sacerdotes e mostra
possibilidades de desenvolvimento que legitimem as mais belas esperanças. A
prece da Igreja ao Senhor da messe, para que mande operários à sua vinha, foi
atendida como o requerem as necessidades da hora presente e, felizmente, supre e
completa as energias, por vezes impedidas e insuficientes, do apostolado
sacerdotal. Uma ardente falange de homens e de mulheres e de jovens de ambos os
sexos, obedecendo à voz do sumo pastor às diretrizes dos próprios bispos,
consagra-se com todo o ardor de sua alma às obras do apostolado para reconduzir
a Cristo as massas populares que dele se haviam separado. A todos chegue, neste
momento tão importante para a Igreja e a humanidade, a nossa saudação
paterna, o nosso comovido agradecimento e a nossa confiante esperança. Puseram
eles, verdadeiramente, a sua vida e as suas obras sob o vexilo de Cristo-Rei e
podem repetir com o Salmista: "Ao rei exponho as minhas obras" (Sl
44, 1). O "venha a nós o vosso reino" é não só o voto ardente de
suas preces, mas também a diretriz de suas obras. Em todas as classes, em todas
as categorias, em todos os grupos esta colaboração do laicado com o
sacerdócio revela preciosas energias às quais está confiada uma missão que
mais elevada e consoladora não poderiam desejar corações nobres e fiéis.
Esse trabalho apostólico, realizado segundo o espírito da Igreja, consagra o
leigo quase "ministro de Cristo" no sentido assim explicado por santo
Agostinho: "Ó irmãos, quando ouvis o Senhor dizer: 'Onde estou eu aí
estará também o meu ministro', não deveis pensar somente nos bons bispos e
nos bons clérigos. Também vós, a vosso modo, deveis ser ministros de Cristo,
vivendo bem, fazendo esmolas, pregando o seu nome e a sua doutrina a quem puderdes, de modo
que cada qual, mesmo se pai de família, reconheça dever, também por esse
título, um afeto paterno à sua família. Por Cristo e pela vida eterna,
ninguém deixe de exortar os seus, e os instrua, exorte, repreenda,
demonstrando-lhes sempre benevolência e mantendo-os na ordem; exercerá assim
em casa o ofício de clérigo e, de certo modo, o de bispo, servindo Cristo,
para com ele permanecer eternamente".
No lar doméstico
63. Ao promover esta colaboração de leigos ao apostolado,
tão importante nos nossos tempos, toca uma especial missão à família, porque
o espírito da família influi essencialmente sobre o espírito das gerações
juvenis. Enquanto resplandecer, no lar doméstico, a chama sagrada da fé em
Cristo e os pais formarem e plasmarem a vida dos filhos segundo esta fé, a
juventude prontificar-se-á sempre a reconhecer o Redentor em suas prerrogativas
reais, e opor-se-á a quem o tente banir da sociedade ou sacrilegamente lhe
viole os direitos. Ainda que se fechem as Igrejas, que se proscreva da escola a
imagem do Crucificado, a família continua a ser um refúgio providencial e, de
certo qual modo, inatacável da vida cristã. E damos infinitas graças a Deus
por vermos que muitíssimas famílias cumprem essa sua missão com uma
fidelidade que afronta todos os ataques e sacrifícios. Uma possante falange
juvenil, mesmo naquelas regiões em que a fé em Cristo significa sofrimento e
perseguição, permanece firme junto do trono do Redentor, com aquela decisão e
tranqüilidade que fazem lembrar os tempos mais gloriosos das lutas da Igreja.
Que de torrentes de bens inundariam o mundo, de quanta luz, ordem e paz gozaria
a vida social, e quantas energias preciosas e insubstituíveis
promoveriam o bem da humanidade se em toda a parte se concedesse à Igreja,
mestra de justiça e de amor, aquela liberdade de ação a que tem direito
sagrado e incontestável, por mandato divino. Quantos males poderiam ser
evitados, quanta felicidade e tranqüilidade se poderia criar, se os esforços
sociais e internacionais para se restabelecer a paz se deixassem permeabilizar
pelos profundos impulsos do evangelho do amor, na luta contra o egoísmo
individual e coletivo!
Trabalho pacificador
64. Entre as leis que regulam a vida dos fiéis cristãos e
os postulados duma genuína humanidade não existe nenhum contraste mas sim
comunhão de ideais e apoio mútuo. Para vantagem da humanidade que,
profundamente abalada, sofre material e moralmente, formulamos um nosso ardente
desejo: e é que as angústias presentes abram os olhos de muitos, a fim de
que, iluminados pela verdadeira luz, possam refletir sobre nosso Senhor Jesus
Cristo e a missão da sua Igreja nesta terra, e para que os que exercem o poder
se resolvam a dar à Igreja campo livre na formação das gerações, segundo os
princípios da justiça e da paz. Este trabalho pacificador supõe naturalmente
que não se interponham embaraços ao exercício da missão que Deus confiou à
sua Igreja, que não se restrinja o campo da sua atividade, que não se subtraia
ao seu benéfico influxo as massas e principalmente a juventude. Por isso nós,
como representante daquele que o profeta denominou "Príncipe da
paz"(Is 9, 6), apelamos para os governantes e para todos os que de qualquer
modo exerçam influência nos negócios públicos, a fim de que a Igreja goze
sempre de plena liberdade no cumprimento da sua obra educativa que é anunciar a
verdade, inculcar a justiça e inflamar os corações de caridade divina.
65. Se, por uma parte, a Igreja não pode renunciar ao
exercício desta sua missão que tem por fim último atuar neste mundo o divino
desígnio de restaurar tudo em Cristo, por outra, esta sua obra de restauração
revela-se, hoje mais do que nunca, necessária; visto a triste experiência vir
demonstrando que os meios externos, as providências humanas e os expedientes
políticos, por si sós, são incapazes de dar um alívio eficaz à humanidade
atribulada por tantos males.
66. Convencidos da dolorosa falência dos expedientes
humanos, e para esconjurar as tempestades que ameaçam arrastar a civilização
para tenebrosa voragem, muitos são os que voltam seus olhares esperançosos
para a Igreja, para a cátedra de Pedro, rocha de verdade e de amor, certos de
que tão-somente dali pode partir aquela unidade de doutrina religiosa e moral
que, em tempos idos, tanta consistência deu às relações pacíficas entre os
povos. Unidade para a qual dirigem também seus olhares nostálgicos tantos
homens responsáveis pelos destinos das nações, os quais estão vendo hoje
quão incapazes sejam os meios em que um dia depositaram tanta confiança;
unidade desejada por muitíssimos dos nossos filhos que invocam cotidianamente o
Deus de paz e de amor; unidade aguardada por tantos espíritos nobres, se bem
afastados de nós, os quais, em sua fome e sede de justiça e de paz, volvem
seus olhares para a Sé Apostólica, dela esperando diretriz e conselho.
67. Reconhecem eles na Igreja católica a bimilenária
estabilidade das normas de fé e de vida, a inabalável solidez da hierarquia
eclesiástica que, unida ao sucessor de Pedro, se prodigaliza em iluminar as
mentes com a doutrina do evangelho, em guiar e santificar os homens; e se é de
grande condescendência para com todos, é também firme, ainda que a custo de tormentos e de martírio,
quando deve dizer: "Não é permitido".
Infundadas suspeitas
68. Entretanto, veneráveis irmãos, tanto a doutrina de
Cristo, única que pode dar aos homens uma base de fé que lhes alargue a vista
e lhes dilate divinamente o coração; única que pode remediar eficazmente às
hodiernas e gravíssimas dificuldades, como a operosidade da Igreja em
desenvolver e difundir tal doutrina são, às vezes, alvos de infundadas
suspeitas como se visassem abalar as bases da autoridade civil ou usurpar-lhes
os direitos.
69. Para desfazer tais suspeitas, declaramos com apostólica
sinceridade – confirmando todavia tudo o que o nosso predecessor Pio XI, de
veneranda memória, ensinou em sua encíclica
Quas primas, de 11 de dezembro de
1925, acerca da potestade de Cristo-Rei e da sua Igreja – que a Igreja jamais
visou nem visa a tais fins, e se alarga os braços para este mundo não é para
dominar mas para servir. Não pretende ela intrometer-se no campo próprio das
demais autoridades legítimas, mas oferece-lhes o seu auxílio, a exemplo e com
o espírito do seu divino Fundador que "passou fazendo o bem" (At
10, 38).
70. A Igreja prega e inculca obediência e respeito às
autoridades terrenas que em Deus tem sua nobre origem, atendo-se ao ensinamento
de Cristo que disse: "Dai a César o que é de César" (Mt 22, 21);
não tem miras usurpadoras e canta na sua liturgia: "não arrebata os
reinos terrestres, Aquele que dá os reinos celestes". Não deprime as energias humanas, mas antes as orienta para o que é
magnânimo e generoso, e forma caracteres que não transigem com a consciência.
Ela, que civilizou os povos, nunca se opôs ao progresso da humanidade, do qual
se compraz e goza com maternal ufania. O fim da sua autoridade declaram-no
admiravelmente os anjos que adejavam sobre o berço do Verbo encarnado, quando
cantavam glória a Deus e anunciavam paz aos homens de boa vontade. Esta paz que
o mundo não pode dar, deixou-a, por herança aos seus discípulos o divino
Redentor: "Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz" (Jo 14, 27); e assim,
seguindo a doutrina sublime de Cristo, por ele mesmo compendiada no duplo
preceito do amor a Deus e ao próximo, milhões de almas conseguiram essa paz,
conseguem-na ainda hoje e hão de consegui-la sempre. A história, por um
célebre orador romano sabiamente denominada "mestra da vida", há
quase dois mil anos vem demonstrando a veracidade da palavra da Escritura que
afirma: "não terá paz quem resiste a Deus" (cf. Jo 9, 4). Porque
somente Cristo é a "pedra angular" (Ef 2, 20), sobre a qual o homem e
a sociedade podem encontrar estabilidade e salvação.
71. Sobre esta pedra angular foi educada a Igreja, e por isso
contra ela nunca poderão prevalecer as potências adversas: "as portas do
inferno não prevalecerão" (Mt 16, 18), nem poderão nunca enfraquecê-la,
porquanto as lutas, tanto internas como externas, só poderão dar-lhe mais
força e aumentar o número de coroas das suas gloriosas vitórias. Ao
contrário, qualquer outro edifício que não tenha suas bases na doutrina de
Cristo, apóia-se sobre areia movediça e estará fadado a ruir miseramente (cf.
Mt 7, 26-27).
V. A ANGUSTIOSA HORA PRESENTE
72. Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos
esta nossa primeira encíclica, bem pode ser qualificado, sob vários aspectos,
de uma verdadeira "hora das trevas" (Lc 22, 53), na qual o espírito da
violência e da discórdia verte sobre a humanidade a sangüinolenta ânfora de
dores inomináveis. Será porventura necessário assegurar-vos que o nosso
coração, repassado de compassivo amor, está nesta hora bem próximo de todos
os seus filhos, e especialmente dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os
povos arrastados para essa trágica voragem, que é a guerra, estão ainda, por
assim dizer, no "princípio das dores" (Mt 24, 8), mas reinam já, em
milhares de famílias, morte e desolação, pranto e miséria. Do sangue de
inúmeros seres humanos, mesmo de não combatentes, desprende-se lancinante
brado, especialmente nessa dileta nação como a Polônia que, pela sua
fidelidade à Igreja, pelos seus grandes méritos na defesa da civilização
cristã, gravados em caracteres indeléveis nos fatos da história, tem direito
à simpatia humana e fraterna do mundo, e aguarda, confiante na poderosa
intercessão de Maria, "Socorro dos cristãos", a hora de uma
ressurreição que corresponde aos princípios da justiça e da verdadeira paz.
73. O que aconteceu há pouco e o que ainda está acontecendo, passara diante de
nossos olhos como uma visão quando, havendo ainda alguma esperança, nada
deixamos de fazer do que nos sugeria o nosso ministério apostólico e os meios
que tínhamos à nossa disposição, para impedir que se recorresse às armas e
para conservar aberto o caminho que levaria a um entendimento honroso para ambas
as partes. Convencidos de que o uso da força por uma das partes obrigaria a
outra a recorrer às armas, julgamos dever imprescindível do nosso ministério
apostólico e do amor cristão, fazer tudo o que pudéssemos para poupar à humanidade toda e à cristandade os horrores de uma
guerra mundial, ainda que as nossas intenções e as nossas vistas corressem
risco de serem mal interpretadas. Os nossos conselhos, se bem ouvidos com
respeito, nem por isso foram seguidos. E enquanto o nosso coração de pastor,
cheio de amargura e preocupação, observa o que se passa, como que aparece aos
nossos olhos a figura do bom pastor, que é como se devêssemos, em seu nome,
repetir ao mundo a queixa: "ah! se conhecesses a mensagem de paz! Agora,
porém, isso está escondido a teus olhos" (Lc 19, 42).
74. No meio deste mundo, hoje em estridente contraste com a
paz de Cristo no reino de Cristo, a Igreja e os seus fiéis acham-se em tempos e
anos de provações, raramente conhecidos na sua história de lutas e de
sofrimentos. Mas em semelhantes ocasiões, quem se conserva firme na fé e tem
coração robusto, sabe também que Cristo-Rei nunca lhe está tão próximo
como na hora da provação, que é a hora da fidelidade. Com o coração
dilacerado pelos sofrimentos de tantos dos seus filhos, mas ao mesmo tempo com
aquela coragem e firmeza que lhe vem das promessas do Senhor, a esposa de Cristo
vai ao encontro dessas ondas procelosas. Sabe que a verdade que anuncia, e a
caridade que ensina e pratica, serão os conselheiros e cooperadores
indispensáveis dos homens de boa vontade que desejem reconstruir um mundo novo,
fundado na justiça e no amor, apenas a humanidade se canse de percorrer o
caminho do erro e de provar os amargos frutos do ódio e da violência.
Uma base fundamental
75. Entretanto, veneráveis irmãos, o mundo e todos os que
são hoje vítimas da calamidade bélica devem saber que o dever do amor
cristão, base fundamental do reino de Cristo, não é uma palavra vã, mas uma viva realidade.
Vastíssimo campo se abre à caridade cristã em todas as suas formas. Temos
plena confiança de que todos os nossos filhos, e especialmente aqueles não
coenvoltos no flagelo da guerra, recordar-se-ão, a exemplo do divino
Samaritano, de socorrer aqueles que, vítimas da guerra, têm direito à
compaixão e socorro.
76. A Igreja católica, cidade de Deus, "que tem por rei
a verdade, por lei a caridade e por medida a eternidade", anunciando sem erros
nem falhas a verdade de Cristo, trabalhando com arrojo materno e segundo o amor
de Cristo, aparecerá certamente como visão beatífica de paz sobre essa
voragem de erros e paixões, aguardando o momento em que a mão onipotente de
Cristo-Rei venha acalmar a tempestade e banir os espíritos da discórdia que a
desencadearam. Continuaremos, entretanto; a fazer tudo o que pudermos para
acelerar o dia em que a pomba da paz possa pousar seus pés sobre esta terra,
ora imersa no dilúvio da discórdia. Continuaremos a fazê-lo, confiando naqueles
eminentes homens de Estado que antes de rebentar a guerra envidaram nobres
esforços para afastar dos povos tão grande flagelo; confiando também nos
milhões de almas de todos os países e esferas sociais que invocam não somente
justiça mas caridade e misericórdia; mas, sobretudo, confiando em Deus
onipotente a quem dirigimos diariamente a oração: "à sombra das vossas
asas me acolho, até que passe a calamidade" (Sl 56, 2).
Deus tudo pode
77. Deus tudo pode: juntamente com a felicidade e os destinos
dos povos tem também em suas mãos os conselhos humanos e quando lhe pareça
bem poderá fazê-los inclinar suavemente para o lado que ele quer; para a sua
onipotência os obstáculos não passam de meios com que plasma as coisas e os
acontecimentos e dirige as mentes e as vontades livres aos seus altíssimos
fins.
78. Orai, pois, veneráveis irmãos, orai sem cessar, orai
sobretudo quando oferecerdes o sacrifício divino do amor. Orai também vós,
cuja profissão corajosa da fé vem impor-vos hoje duros, penosos e, não raro,
heróicos sacrifícios; orai vós membros padecentes da Igreja, que Jesus há de
consolar-vos e aliviará os vossos sofrimentos. E não vos esqueçais de, com
verdadeiro espírito de mortificação, tornar as vossas penitências e orações
mais aceitas aos olhos daquele que "ampara os que caem e endireita todos os
curvados" (Sl 144, 14) a fim de que a sua misericórdia abrevie os dias de
provação e se realizem assim as palavras do Salmo: "Invocaram o Senhor
nas suas tribulações e ele livrou-os das suas angústias" (Sl 106, 13).
79. E vós, cândidas legiões de crianças, que sois os
benjamins e prediletos de Jesus, ao receberdes o Pão da vida, dirigi a
ele
vossas ingênuas e inocentes orações unindo-as às de toda a Igreja. O
coração de Jesus, que vos ama, não poderá resistir à inocência que
suplica. Orai todos e orai sem cessar.
80. Poreis assim em prática o sublime preceito do divino
Mestre, o testamento sagrado do seu coração, "que todos sejam uma só
coisa" (Jo 17, 21): isto é, que todos vivam naquela unidade de fé e de
amor, na qual reconheça o mundo o poder e a eficácia da missão de Cristo e da
obra da sua Igreja.
81. A Igreja dos primeiros tempos compreendeu e praticou este
divino preceito exprimindo-o também em magnífica oração; uni-vos, pois,
todos com os mesmos sentimentos que tanto correspondem às necessidades dos tempos
atuais: "Lembrai-vos, Senhor, da vossa Igreja, para livrá-la de todo o mal
e aperfeiçoá-la na vossa caridade e, santificada, reuni-a de todas as partes
do mundo no vosso reino que para ela preparastes, porque vossa será a virtude e
glória por todos os séculos".
82. Confiando que Deus, autor e amante da paz, se digne atender
às súplicas da Igreja, como penhor da abundância das graças divinas e da
plenitude de nosso ânimo paterno, vos concedemos a bênção apostólica.
Dado em Castelgandolfo, junto de Roma, no dia 20 de outubro
do ano de 1939, I do Nosso Pontificado.
PIO PP. XII