CARTA
ENCÍCLICA
HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O CULTO DO SAGRADO
CORAÇÃO DE JESUS
CORAÇÃO DE JESUS
INTRODUÇÃO
ADMIRÁVEL DESENVOLVIMENTO DO CULTO
DO CORAÇÃO SACRATÍSSIMO DE JESUS NOS TEMPOS MODERNOS
DO CORAÇÃO SACRATÍSSIMO DE JESUS NOS TEMPOS MODERNOS
1. "Haurireis águas com gáudio das fontes do
Salvador" (Is 12, 3). Essas palavras, com que o profeta Isaías prefigurava
os múltiplos e abundantes bens que os tempos cristãos haveriam de trazer,
acodem-nos espontaneamente ao espírito ao completar-se a primeira centúria
desde que o nosso predecessor de imperecível memória Pio IX, correspondendo
aos desejos do orbe católico, ordenou que se celebrasse na Igreja universal a
festa do sacratíssimo coração de Jesus.
2. Inumeráveis são as riquezas celestiais que nas almas dos
fiéis infunde o culto tributado ao sagrado coração, purificando-os,
enchendo-os de consolações sobrenaturais, e excitando-os a alcançar toda
sorte de virtudes. Portanto, tendo presentes as palavras do apóstolo são
Tiago. "Toda dádiva preciosa e todo dom perfeito vem do alto e desce do
Pai das luzes" (Tg 1, 17), neste culto, que cada vez mais se incende e se
estende por toda parte, com toda razão, podemos considerar o inapreciável dom que o
Verbo encarnado e salvador nosso, como único mediador da graça e da verdade
entre o Pai celestial e o gênero humano, concedeu à sua mística esposa nestes
últimos séculos, em que ela teve de suportar tantos trabalhos e dificuldades.
Assim, pois, gozando deste inestimável dom, pode a Igreja manifestar mais
amplamente o seu amor ao divino Fundador, e cumprir mais fielmente a exortação
que o evangelista são João põe na boca do próprio Jesus Cristo: "No
último dia da festa, que é o mais solene, Jesus pôs-se em pé, e em voz alta
dizia: Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim. Do seu seio,
como diz a Escritura, manarão rios de água viva. Isto o disse pelo Espírito
que haveriam de receber os que nele cressem" (Jo 7, 37-39). Ora, aos que
escutavam essas palavras de Jesus, pelas quais ele prometia que do seu seio
haveria de manar uma fonte "de água viva", certamente não lhes era
difícil relacioná-las com os vaticínios com que Isaías, Ezequiel e Zacarias
profetizavam o reino do Messias, e com a simbólica pedra que, golpeada por
Moisés, de maneira milagrosa haveria de jorrar água (cf. Is 12, 3; Ez 47, 1-12;
Zc 13, 1; Ex 17, 1-7; Nm 20, 7-13;1 Cor 10, 4;
Ap 7, 17; 22,1).
3. A caridade divina tem a sua primeira origem no Espírito
Santo, que é o amor pessoal, assim do Pai como do Filho, no seio da Trindade
augusta. Com sobradíssima razão, pois, o apóstolo das gentes, como que
fazendo-se eco das palavras de Jesus Cristo, atribui a esse Espírito de amor a
efusão da caridade nas almas dos crentes: "A caridade de Deus foi
derramada nos nossos corações por meio do Espírito Santo, que nos foi
dado" (Rm 5,5).
4. Este estreito vínculo que segundo a Sagrada Escritura,
existe entre o Espírito Santo, que é amor por essência, e a caridade divina,
que deve acender-se cada vez
mais na alma dos fiéis, demonstra abundantemente a todos
nós, veneráveis irmãos, a natureza íntima do culto que se deve tributar ao
coração de Jesus Cristo. Com efeito, se lhe considerarmos a natureza
particular, manifesto é que este culto é um ato de religião excelentíssimo,
visto exigir de nós uma plena e inteira vontade de entrega e consagração ao
amor do divino Redentor, do qual é sinal e símbolo vivo o seu coração
traspassado. Consta igualmente, e em sentido ainda mais profundo, que este culto
aprofunda a correspondência do nosso amor ao amor divino. Pois só em virtude
da caridade se obtém que os homens se submetam mais perfeita e inteiramente ao
domínio de Deus, já que o nosso amor de tal maneira se apega à divina
vontade, que vem a fazer-se uma coisa só com ela, consoante aquelas palavras:
"Quem está unido ao Senhor é com ele um mesmo espírito" (1 Cor
6, 17).
I
FUNDAMENTOS E PREFIGURAÇÕES DO CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
NO ANTIGO TESTAMENTO
FUNDAMENTOS E PREFIGURAÇÕES DO CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
NO ANTIGO TESTAMENTO
1) Incompreensão da verdadeira natureza do culto ao
coração sacratíssimo de Jesus
por parte de alguns cristãos
por parte de alguns cristãos
5. Conquanto a Igreja em tão grande estima tenha tido sempre
e ainda tenha o culto do sacratíssimo coração de Jesus, a ponto de se
empenhar em fomentá-lo e propagá-lo por toda parte entre o povo cristão, e
conquanto se esforce diligentemente por defendê-lo contra o
"naturalismo" e o "sentimentalismo", todavia é muito
doloroso verificar que, no passado e em nossos dias, alguns cristãos não têm
este nobilíssimo culto na honra e estima devidas, e às vezes não o têm nem
mesmo aqueles que se dizem animados de zelo sincero pela
religião católica e
pela própria perfeição.
6. "Se conhecesses o dom de Deus" (Jo 4, 10).
Servimo-nos dessas palavras veneráveis irmãos, nós, que por disposição
divina fomos constituídos guardas e dispensadores do tesouro da fé e da
religião que o divino Redentor entregou à sua Igreja, para admoestar todos
aqueles dos nossos filhos que, apesar de, vencendo a indiferença e os erros
humanos, já haver o culto do sagrado coração de Jesus penetrado no seu corpo
místico, ainda abrigam preconceitos para com ele, e chegam até a reputá-lo
menos adaptado, para não dizer nocivo, às necessidades espirituais mais
urgentes da Igreja e da humanidade na hora presente. Porque não falta quem,
confundindo ou equiparando a índole primária deste culto com as diversas
formas de devoção que a Igreja aprova e favorece, mas não prescreve, o tem
como um acréscimo que cada um pode praticar à vontade, e alguns há também
que consideram oneroso este culto, e mesmo de nenhuma ou pouca utilidade,
especialmente para os militantes do reino de Deus, empenhados em consagrar o
melhor das suas energias, dos seus recursos e do seu tempo à defesa da verdade
católica, para ensiná-la e propagá-la, e para difundir a doutrina social
católica, fomentando práticas religiosas e obras por eles julgadas mais
necessárias nos nossos dias. Por último, há quem creia que este culto, longe
de ser um poderoso meio para estabelecer e renovar os costumes cristãos na vida
individual e familiar, é antes uma devoção sensível não enformada em altos
pensamentos e afetos, e, portanto, mais própria para mulheres do que para
pessoas cultas.
7. Outros, finalmente, ao considerarem que esta devoção
pede
penitência, expiação e outras virtudes, sobretudo as que se chamam
"passivas", por não produzirem frutos externos; não a julgam a propósito
para reacender a
piedade, a qual deve tender cada vez mais à ação intensa, encaminhada ao
triunfo da fé católica e à valente defesa dos costumes cristãos, os
quais
hoje, como todos sabem, se vêm facilmente infectados pelo
indiferentismo, que não reconhece nenhum critério para distinguir o
verdadeiro do falso no modo de
pensar e de agir, e, assim, se vêem lamentavelmente alheados pelos
princípios
do materialismo ateu e do laicismo.
2) Estima e bênção dos sumos pontífices ao culto do
sagrado coração de Jesus
8. Quem não vê, veneráveis irmãos, quão alheias são
essas opiniões do sentir dos nossos predecessores, que desta cátedra de
verdade publicamente aprovaram o culto do sacratíssimo coração de Jesus? Quem
ousará chamar inútil ou menos acomodada aos nossos tempos esta devoção que o
nosso predecessor de imperecível memória Leão XIII chamou de
"estimadíssima prática religiosa", e na qual viu um poderoso
remédio para os próprios males que, nos nossos dias de maneira mais aguda e
com mais extensão, afligem os indivíduos e a sociedade? "Esta devoção – dizia ele
– que a todos recomendamos, a todos será de proveito". E
acrescentava estes avisos e exortações que também se referem à devoção ao
sagrado coração: "Daí a violência dos males que, há tempo, estão como
que implantados entre nós, e que reclamam urgentemente busquemos a ajuda do
único que tem poder para os afastar. E quem pode ser este senão Jesus Cristo,
o unigênito de Deus? Pois nenhum outro nome foi dado aos homens sob o céu no
qual devamos salvar-nos" (At 4,12). "Cumpre recorrer a ele, que é
caminho, verdade e vida".
9. Nem menos dignos de aprovação e adequado para fomentar a
piedade cristã julgou-o o nosso imediato predecessor, de feliz memória, Pio
XI, que, na sua encíclica "Miserentissimus Redemptor", escrevia:
"Acaso não está contido nessa forma de devoção o compêndio de toda a
religião, e mesmo a norma de vida mais perfeita, como quer que ele guie mais
suavemente as almas para o profundo conhecimento de Cristo Senhor nosso, e com
maior eficácia as mova a amá-lo mais apaixonadamente e a imitá-lo mais de
perto?" Nós, por nossa parte, com não menor agrado do que os nossos
predecessores, aprovamos e aceitamos essa sublime verdade; e, quando fomos
elevado ao sumo pontificado, ao contemplarmos o feliz e triunfal progresso do
culto ao sagrado coração de Jesus entre o povo cristão, sentimos o nosso
ânimo cheio de alegria e regozijamo-nos com os inúmeros frutos de salvação
que ele havia produzido em toda a Igreja, sentimentos que tivemos a satisfação
de exprimir logo na nossa primeira encíclica. Através dos anos do nosso
pontificado – cheios não só de calamidades e angústias, como também de
inefáveis consolações -, esses frutos não diminuíram nem em número, nem em
eficácia, nem em beleza, antes aumentaram. Com efeito, iniciativas múltiplas e
muito acomodadas às necessidades dos nossos tempos surgiram para reacender este
culto: referimo-nos às associações destinadas à cultura intelectual e à
promoção da religião e da beneficência; às publicações de caráter
histórico, ascético e místico encaminhadas a este mesmo fim; às piedosas
práticas de reparação e, de modo especial, às manifestações de
ardentíssima piedade que têm promovido o Apostolado da oração, a cujo zelo e
atividade se deve o se haverem famílias, colégios, instituições, e mesmo
algumas nações, consagrado ao sacratíssimo coração de Jesus;
e não raras vezes, por ocasião dessas manifestações de culto, mediante
cartas, discursos e mesmo radiomensagens temos expressado a nossa paternal
complacência.
10. Portanto, ao vermos que tamanha abundância de águas, quer
dizer, de dons celestiais do supremo amor, que têm brotado do sagrado coração
do nosso Redentor, se derramam sobre incontáveis filhos da Igreja católica por
obra e inspiração do Espírito Santo, não podemos, veneráveis irmãos,
deixar de exortar-vos com ânimo paterno a que, juntamente conosco, tributeis
louvores e profundas ações de graças ao dispensador de todos os bens,
repetindo estas palavras do apóstolo das gentes: "Aquele que é poderoso
para fazer, acima de toda medida, com incomparável excesso, mais do que pedimos
ou pensamos, segundo o poder que desenvolve em nós a sua energia, a ele glória
na Igreja e em Cristo Jesus por todas as gerações, nos séculos dos séculos.
Amém" (Ef 3,20-21). Mas, depois de tributarmos as devidas graças ao Deus
eterno, queremos por meio desta encíclica exortar-vos, a vós e a todos os
amadíssimos alhos da Igreja, a uma mais atenta consideração dos princípios
doutrinais contidos na Bíblia, nos santos padres, e nos teólogos; princípios
nos quais, como em sólidos fundamentos, se apóia o culto do sacratíssimo
coração de Jesus. Porque nós estamos plenamente persuadidos de que só quando
à luz da divina revelação houvermos penetrado a fundo a natureza e a
essência íntima deste culto, é que poderemos apreciar devidamente a sua
incomparável excelência e a sua inexaurível fecundidade em toda sorte de
graças celestiais, e destarte, meditando e contemplando piedosamente
os inúmeros bens que ela produz, poderemos celebrar
dignamente o primeiro centenário da festa do sacratíssimo coração de Jesus
na Igreja universal.
11. Com o fim, pois, de oferecer à mente dos féis o
alimento de salutares reflexões, com as quais possam eles mais facilmente
compreender a natureza deste culto, tirando dele frutos mais abundantes,
deter-nos-erros antes de tudo nas páginas do Antigo e do Novo Testamento que
contêm a revelação e descrição da caridade infinita de Deus para com o
gênero humano, caridade cuja sublime grandeza jamais poderemos esquadrinhar
suficientemente; depois aduziremos o comentário que sobre ela nos deixaram os
padres e doutores da Igreja; e, finalmente, procuraremos esclarecer a íntima
conexão que existe entre a forma de devoção que se deve tributar ao coração
do divino Redentor e o culto que os homens estão obrigados a render ao amor,
que ele e as outras pessoas da Santíssima Trindade têm a todo gênero humano.
Pois achamos que, uma vez considerados à luz da Sagrada Escritura e da
tradição os elementos constitutivos desta nobilíssima devoção, aos
cristãos será mais fácil chegarem-se "com gáudio às águas das fontes
do Salvador" (Is 12, 3); quer dizer, poderão eles apreciar melhor a
singular importância que o culto ao coração sacratíssimo de Jesus adquiriu
na liturgia da Igreja, na sua vida interna e externa, e também nas suas obras;
e assim cada um poderá obter frutos espirituais que assinalarão uma salutar
renovação nos seus costumes, segundo os desejos dos pastores do rebanho de
Cristo.
3) O amor de Deus, motivo dominante do culto ao santíssimo
coração de Jesus,
no Antigo Testamento
no Antigo Testamento
12.
Para melhor poder compreender a força que com relação a esta devoção
encerram alguns textos do Antigo e do Novo Testamento, é preciso entender bem o
motivo pelo qual a Igreja tributa ao coração do divino Redentor o
culto de latria. Duplo, veneráveis irmãos, como bem sabeis, é tal motivo: o
primeiro, que é comum também aos demais membros adoráveis do corpo de Jesus
Cristo, funda-se no fato de, sendo o seu coração parte nobilíssima da
natureza humana, estar unido hipostaticamente à pessoa do Verbo de Deus, e,
portanto, dever-se-lhe tributar o mesmo culto de adoração com que a Igreja
honra a pessoa do próprio Filho de Deus encarnado. Trata-se, pois, de uma
verdade de fé católica, solenemente definida no concílio ecumênico de Éfeso
e no II de Constantinopla. O outro motivo concerne de maneira especial ao
coração do divino Redentor, e, pela mesma razão, confere-lhe um título
inteiramente próprio para receber o culto de latria. Provém ele de que, mais
do que qualquer outro membro do seu corpo, o seu coração é o índice natural
ou o símbolo da sua imensa caridade para com o gênero humano. Como observava o
nosso predecessor Leão XIII, de imortal memória, "é ínsita no sagrado
coração a qualidade de ser símbolo e imagem expressiva da infinita caridade
de Jesus Cristo que nos incita a retribuir-lhe o amor por amor".
13. Coisa indubitável é que nos livros sagrados nunca se
faz menção certa de um culto de especial veneração e amor tributado ao
coração físico do Verbo encarnado pela sua prerrogativa de símbolo da sua
inflamadíssima caridade. Mas este fato, que cumpre reconhecer abertamente, não
nos deve admirar, nem de modo algum fazer-nos duvidar de que a caridade divina
para conosco – razão principal deste culto – é exaltada tanto pelo Antigo como
pelo Novo Testamento com imagens sumamente comovedoras. E, por se encontrarem nos livros santos que prediziam
a vinda do Filho de Deus feito homem, podem essas imagens considerar-se como um
presságio daquilo que havia de ser o símbolo e índice mais nobre do amor
divino, a saber: o coração sacratíssimo e adorável do Redentor divino.
14. Pelo que se refere ao nosso propósito, não julgamos
necessário aduzir muitos textos do Antigo Testamento nos quais estão contidas
as primeiras verdades reveladas por Deus, mas cremos bastará recordar o pacto
estabelecido entre Deus e o povo eleito, pacto sancionado com vítimas
pacíficas – e cujas leis fundamentais, esculpidas em duas tábuas, Moisés
promulgou (cf. Ex 34, 27-28) e os profetas interpretaram -, esse pacto não se
baseava somente nos vínculos do supremo domínio de Deus e na devida
obediência da parte do homem, mas consolidava-se e vivificava-se com os mais
nobres motivos do amor. Porque também para o povo de Israel a razão suprema de
obedecer a Deus, devia ser não tanto o temor das divinas vinganças suscitado
nos ânimos pelos trovões e relâmpagos procedentes do ardente cume do Sinai,
mas, antes, o amor devido a Deus: "Escuta, Israel: O Senhor, nosso Deus, é
o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com
toda a tua alma e com todas as tuas forças. E estas palavras que hoje te ordeno
estarão sobre o teu coração" (Dt 6, 4-6).
15. Não nos deve, pois, causar estranheza que Moisés e os
profetas, aos quais o Doutor angélico chama com razão os "maiorais"
do povo eleito, compreendendo bem que o fundamento de toda a lei se baseava
neste mandamento do amor, descrevessem as relações todas existentes
entre Deus e a sua nação, recorrendo a semelhanças tiradas
do amor recíproco entre pai e filhos, ou do amor dos esposos, em vez de
representá-las com imagens severas inspiradas no supremo domínio de Deus ou na
nossa devida servidão cheia de temor. Assim, por exemplo, no seu celebérrimo
cântico pela libertação do seu povo da servidão do Egito, ao querer exprimir
como essa libertação era devida à intervenção onipotente de Deus, o
próprio Moisés recorre a estas comovedoras expressões e imagens: "Assim
como a águia provoca seus filhotes a alçarem o vôo e acima deles revoluteia,
assim também (Deus) estendeu as suas asas e acolheu (Israel) e carregou-o nos
seus ombros" (Dt 32, 11). Talvez, porém, entre os profetas, nenhum exprima
e descubra melhor, tão clara e ardentemente, quanto Oséias, o amor constante
de Deus para com seu povo. Com efeito, nos escritos deste profeta, que entre os
profetas menores sobressai pela profundeza de conceitos e pela concisão da
linguagem, Deus é descrito amando o seu povo escolhido com um amor justo e
cheio de santa solicitude, qual é o amor de um pai cheio de misericórdia e de
amor, ou de um esposo ferido na sua honra. É um amor que, longe de decair e de
cessar à vista de monstruosas infidelidades e pérfidas traições, castiga-os,
sim, como eles merecem, mas não para os repudiar e os abandonar a si mesmos,
mas só com o fim de limpar, de purificar a esposa afastada e infiel e os filhos
ingratos, para tornar a uni-los novamente consigo uma vez renovados e confirmados
os vínculos de amor: "Quando Israel era criança amei-o; e do Egito chamei
meu filho... Ensinei Efraim a andar, tomei-o nos meus braços, mas eles não
reconheceram que eu cuidava deles. Com vínculos humanos atraí-los-ei, com
laços de amor... Sanar-lhes-ei as rebeldias, amá-los-ei generosamente, pois
minha ira não se afastou deles. Serei como o orvalho para Israel, ele
florescerá como o lírio e lançará suas raízes qual o Líbano" (Os
11, 1.3-4; 14, 5-6).
16. Expressões semelhantes tem o profeta Isaías quando
apresenta o próprio Deus e o povo escolhido como que dialogando entre si com
estas palavras: "Mas Sião disse: O Senhor abandonou-me e esqueceu-se de
mim. Pode, acaso, uma mulher esquecer o seu pequenino de sorte que não se
apiede do filho de suas entranhas? Ainda que esta se esquecesse, eu não me
esquecerei de ti" (Is 49, 14-15). Nem menos comovedoras são as palavras com
que, servindo-se do simbolismo do amor conjugal, o autor do Cântico dos
cânticos descreve com vivas cores os laços de amor mútuo que unem entre si,
Deus e a nação predileta: "Como lírio entre os espinhos, assim é minha
amada entre as donzelas... Eu sou de meu amado e meu amado é meu: o que se
apascenta entre os lírios... Põe-me como selo sobre teu coração, como selo
sobre teu braço, pois forte como a morte é o amor, duros como o inferno os
ciúmes: seus ardores são ardores de fogo e de chamas" (Ct 2, 2; 6, 2; 8, 6).
17. Com todo esse amor, terníssimo, indulgente e longânime
mesmo quando se indigna pelas repetidas infidelidades do povo de Israel, Deus
nunca chega a repudiá-lo definitivamente; mostra-se, sim, veemente e sublime;
mas, contudo, em substância isso não passa do prelúdio daquela
inflamadíssima caridade que o Redentor prometido havia de mostrar a todos com o
seu amantíssimo coração, e que ia ser o modelo do nosso amor e a pedra
angular da nova aliança. Porque, em verdade, só aquele que é o Unigênita do
Pai e o Verbo feito carne "cheio de graça e de verdade" (Jo 1, 14),
tendo descido até os homens oprimidos de inúmeros pecados e misérias, podia
fazer brotar da sua natureza humana, unida hipostaticamente à sua pessoa
divina, "um manancial de água viva" que regasse copiosamente a terra
árida da humanidade, transformando-a em florido e fértil jardim. E essa obra
admirável que o amor misericordioso e eterno de Deus devia
realizar, de certo modo já parece prenunciá-la o profeta Jeremias com estas
palavras: "Amei-te com amor eterno; por isso atrai-te a mim cheio de
misericórdia... Eis vêm dias, afirma o Senhor, em que pactuarei com a casa de
Israel e com a casa de Judá uma aliança nova: este será o pacto que eu
concertarei com a casa de Israel depois daqueles dias, declara o Senhor: Porei
minha lei no interior dele e escrevê-la-ei no seu coração, e serei o seu Deus
e eles serão o meu povo...; porque perdoarei a sua culpa e não mais me
lembrarei dos seus pecados" (Jr 31, 3.31. 33-4).
II
LEGITIMIDADE DO CULTO AO SANTÍSSIMO CORAÇÃO DE JESUS
SEGUNDO A DOUTRINA
DO NOVO TESTAMENTO E DA TRADIÇÃO
LEGITIMIDADE DO CULTO AO SANTÍSSIMO CORAÇÃO DE JESUS
SEGUNDO A DOUTRINA
DO NOVO TESTAMENTO E DA TRADIÇÃO
1) O amor de Deus no mistério da encarnação redentora
segundo o Evangelho
18. Mas somente pelo Evangelho chegamos a conhecer com
perfeita clareza que a nova aliança estipulada entre Deus e a humanidade
– aliança da qual a pactuada por Moisés entre o povo e Deus foi somente
uma
prefiguração simbólica, e o vaticínio de Jeremias mera predição – é
aquela que o Verbo encarnado estabeleceu e levou à prática merecendo-nos
a
graça divina. Esta aliança é incomparavelmente mais nobre e mais sólida,
porque, a diferença da precedente, não foi sancionada com sangue de
cabritos e
novilhos, mas com o sangue sacrossanto daquele que esses animais
pacíficos e
privados de razão, prefiguravam: "o Cordeiro de Deus que tira o pecado
do
mundo" (cf. Jo 1, 29; Hb 9, 18-28; 10, 1-17). Porque a aliança cristã, ainda mais do que a antiga, manifesta-se
claramente como um pacto, não inspirado em sentimentos de servidão, não
fundado no temor, mas apoiado na amizade que deve reinar nas relações entre
pai e filhos, sendo ela alimentada e consolidada por uma mais generosa
distribuição da graça divina e da verdade, conforme a sentença do evangelho
de João: "Da sua plenitude todos nós participamos, e recebemos uma graça
por outra graça. Porque a lei foi dada por Moisés, mas a graça foi trazida
por Jesus Cristo" (Jo 1, 16-17).
19. Introduzidos, por essas palavras do "discípulo
amado que durante a ceia reclinara a cabeça sobre o peito de Jesus" (Jo
21, 20), no próprio mistério da infinita caridade do Verbo encarnado, é coisa
digna, justa, reta e salutar nos detenhamos um pouco, veneráveis irmãos, na
contemplação de tão suave mistério, a fim de, iluminados pela luz que sobre
ele projetam as páginas do Evangelho, podermos também nós experimentar o
feliz cumprimento do voto que o Apóstolo formulava escrevendo aos fiéis de
Éfeso: "Habite Cristo, pela fé, nos vossos corações, vós que estais
arraigados e cimentados em caridade, para que possais compreender com todos os
santos qual é a largura e comprimento, a altura e profundidade deste mistério,
e conhecer também o amor de Cristo a nós, o qual sobrepuja todo conhecimento,
para que sejais plenamente cumulados de todos os dons de Deus" (Ef
3, 17-19).
20. Com efeito, o mistério da divina redenção é, antes de
tudo e pela sua própria natureza, um mistério de amor: isto é, um mistério
de amor justo da parte de Cristo para com seu Pai celeste, a quem o sacrifício
da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação
superabundante e infinita pelos pecados do gênero humano: Cristo, sofrendo por
caridade e obediência, ofereceu à Deus alguma coisa de valor maior do que o exigia a
compensação por todas as ofensas feitas a Deus pelo gênero humano. Além
disso, o mistério da redenção é um mistério de amor misericordioso da
augusta Trindade e do divino Redentor para com a humanidade inteira, visto que,
sendo esta totalmente incapaz de oferecer a Deus uma satisfação condigna pelos
seus próprios delitos, mediante a imperscrutável riqueza de méritos que nos
ganhou com a efusão do seu precioso sangue, Cristo pode restabelecer e
aperfeiçoar aquele pacto de amizade entre Deus e os homens violado pela
primeira vez no paraíso terrestre por culpa de Adão e depois, inúmeras vezes,
pela infidelidade do povo escolhido. Portanto, havendo na sua qualidade de nosso
legítimo e perfeito mediador, e sob o estímulo de uma caridade energética
para conosco, conciliando as obrigações e compromissos do gênero humano com
os direitos de Deus, o divino Redentor foi, sem dúvida, o autor daquela
maravilhosa reconciliação entre a divina justiça e a divina misericórdia, a
qual justamente constitui a absoluta transcendência do mistério da nossa
salvação, tão sabiamente expresso pelo doutor angélico com estas palavras:
"Convém observar que a libertação do homem, mediante a paixão de
Cristo, foi conveniente tanto para a justiça como para a misericórdia do mesmo
Cristo. Antes de tudo para a justiça, porque com a sua paixão Cristo satisfez
pela culpa do gênero humano, e, por conseguinte, pela justiça de Cristo foi o
homem libertado. E, em segundo lugar, para a misericórdia, porque, não sendo
possível ao homem satisfazer pelo pecado, que manchava toda a natureza humana,
deu-lhe Deus um reparador na pessoa de seu Filho. Ora, isto foi, da parte de
Deus, um gesto de mais generosa misericórdia do que se ele houvesse perdoado os pecados sem exigir
qualquer satisfação. Por isso está escrito: 'Deus, que é rico em
misericórdia, movido pelo excessivo amor com que nos amou quando estávamos
mortos pelos pecados, deu-nos vida juntamente em Cristo'" (Ef 2, 4).
2) Tríplice amor do Redentor para com o gênero humano: divino,
espiritual e sensível
21. Mas, a fim de, na medida que isso é dado aos homens
mortais, poderdes "compreender com todos os santos qual é a largura e
comprimento, a altura e profundidade" (Ef 3,18) da insondável caridade do
Verbo encarnado para com seu Pai celestial e para com os homens manchados de
tantas culpas, convém ter bem presente que o amor não foi unicamente
espiritual, como convém a Deus, visto que "Deus é espírito" (Jo
4,24). Indubitavelmente, de índole puramente espiritual foi o amor nutrido por
Deus para com nossos progenitores e para com o povo hebreu; por isso, as
expressões de amor humano, quer conjugal, quer paterno, que se lêem nos
Salmos, nos escritos dos profetas e no Cântico dos cânticos, são indícios e
símbolos de um amor verdadeiros mas totalmente espiritual, com que Deus amava o
gênero humano; ao contrário, o amor que se exala do Evangelho, das cartas dos
apóstolos e das páginas do Apocalipse, onde se descreve o amor do coração de
Jesus, não compreende somente a caridade divina, mas se estende também aos
sentimentos do afeto humano. Para todo aquele que faz profissão de fé
católica, essa verdade é indiscutível. Com efeito, o Verbo de Deus não tomou
um corpo ilusório e fictício; como já no primeiro século da era cristã
ousaram afirmar alguns hereges, que atraíram a severa condenação do apóstolo
João: "porque muitos sedutores que não confessam a Jesus Cristo encarnado espalham-se pelo mundo. Este é o
Sedutor, o Anticristo" (2 Jo 7); porém ele, o Verbo de Deus, uniu à sua
divina pessoa uma natureza humana indivídua, íntegra e perfeita, concebida no
seio imaculado de Maria Virgem por obra do Espírito Santo (cf. Lc
1,35). Nada,
pois, faltou à natureza humana assumida pelo Verbo de Deus; em verdade,
ele a
possui sem nenhuma diminuição, sem nenhuma alteração, tanto nos
elementos
constitutivos espirituais quanto nos corporais, a saber: dotada de
inteligência
de vontade e demais faculdades cognoscitivas internas e externas; dotada
igualmente das potências afetivas, sensitivas e das suas correspondentes
paixões. É isso o que ensina a Igreja católica, por estar sancionado e
solenemente confirmado pelos romanos pontífices e pelos concílios
ecumênicos:
"Inteiro nas suas propriedades, inteiro nas nossas"; "perfeito
na divindade e perfeito ele próprio na humanidade"; "todo Deus
(feito) homem e todo o homem (subsistente em) Deus".
22. Não havendo, pois, dúvida alguma de que Jesus possuía
um verdadeiro corpo humano, dotado de todos os sentimentos que lhe são
próprios, entre os quais campeia o amor, do mesmo modo é muito verdade que ele
foi provido de um coração físico em tudo semelhante ao nosso, não sendo
possível que a vida humana, privada deste excelentíssimo membro do corpo,
tenha a sua natural atividade afetiva. Por conseguinte, o coração de Cristo,
unido hipostaticamente à pessoa divina do Verbo, sem dúvida deve ter palpitado
de amor e de qualquer outro
afeto sensível; contudo, esses sentimentos eram tão
conformes e estavam tão em harmonia com a vontade humana, transbordante de
caridade divina, e com o próprio amor infinito que o Filho tem com o Pai e com
o Espírito Santo, que jamais se interpôs a mínima oposição e discórdia
entre esses três amores.
23. Todavia, o fato de haver o Verbo de Deus assumido a
verdadeira e perfeita natureza humana, e de lhe ter sido plasmado e como que
modelado um coração de carne que, não menos do que o nosso, fosse capaz de
sofrer e de ser ferido, esse fato, digamos, se não é visto e considerado à
luz que emana não só da união hipostática e substancial, mas também da
verdade da redenção humana, que é, por assim dizer, o complemento daquela, a
alguns poderia parecer "escândalo" e "loucura", como de
fato aos judeus e gentios pareceu "Cristo crucificado" (cf. 1 Cor
1, 23). Ora, os símbolos da fé, perfeitamente concordes com as divinas
Escrituras, asseguram-nos que o Filho unigênito de Deus assumiu a natureza
passível e mortal com a mira posta principalmente no sacrifício cruento da
cruz, que ele desejava oferecer com o fim de realizar a obra da salvação do
homem. Além disso, esta é a doutrina exposta pelo Apóstolo das gentes:
"Porque aquele que santifica, e os santificados, todos tiram de um a sua
origem. Razão pela qual ele não tem escrúpulos de chamá-los irmãos,
dizendo: 'Anunciarei teu nome a meus irmãos...' Outrossim: `Eis-nos aqui, eu e
meus filhos que Deus me deu'. E por isso que os filhos têm comuns a carne e o
sangue, ele também participou das mesmas coisas... Pelo que, em tudo teve de se
assemelhar a seus irmãos, afim de ser um pontífice misericordioso e fiel para
com Deus, em ordem a expiar os pecados do povo. Já que, em razão
de haver ele mesmo padecido e de ter sido tentado, pode
também dar a mão aos que são tentados" (Hb 2, 11-14; 17-18).
3) O testemunho dos santos Padres em favor dos afetos
sensíveis do Verbo encarnado
24. Os santos Padres, testemunhas verazes da doutrina
revelada, advertiram muito oportunamente o que já Paulo apóstolo claramente
significara, a saber: que o amor divino é como o princípio e a culminância da
obra da encarnação e redenção. Lê-se freqüentemente nos escritos deles que
Jesus Cristo tomou em si a natureza humana perfeita, o nosso corpo frágil e
caduco, para nos proporcionar a salvação eterna e manifestar, patentear em
forma sensível o seu infinito amor a nós.
25. Fazendo-se eco da voz do Apóstolo das gentes, são
Justino escreve o seguinte: "Amamos e adoramos o Verbo nascido de Deus
inefável e que não tem princípio; já que ele se fez homem por nós para que,
tornado participante das nossas doenças, proporcionasse-nos o seu
remédio", E s. Basílio, o primeiro dos três Padres da Capadócia,
afirma que os afetos sensíveis de Cristo foram verdadeiros e ao mesmo tempo
santos: "É manifesto que o Senhor possuiu os afetos naturais em
confirmação da sua verdadeira, e não fantástica, encarnação; manifesto é
também que ele repeliu como indignos da divindade os afetos viciosos, que
mancham a pureza-da nossa vida". Igualmente, s. João Crisóstomo, luminar
da Igreja antioquena, confessa que as emoções sensíveis de que o Senhor deu
mostra provam irrecusavelmente haver ele possuído integralmente a nossa
natureza humana: "A não haver ele possuído a nossa natureza, não teria experimentado, uma e
mais vezes, a tristeza". Entre os Padres latinos, merecem lembrança os
que hoje a Igreja venera como doutores máximos. Santo Ambrósio afirma que a
união hipostática é a origem natural dos afetos e sentimentos que o Verbo de
Deus encarnado experimentou: "Portanto, já que ele tomou a alma, tomou as
paixões da alma; pois Deus, como Deus que é, não podia perturbar-se nem
morrer". Nessas mesmas reações apóia s. Jerônimo o principal
argumento para provar que Cristo assumiu realmente a natureza humana: nosso
Senhor entristeceu-se realmente, para manifestar a sua humana natureza.
Particularmente santo Agostinho faz notar a íntima união existente entre os
sentimentos do Verbo encarnado e a finalidade da redenção humana: "O
Senhor revestiu-se dos afetos da fragilidade humana, do mesmo modo que aceitou a
fragilidade da nossa carne e a morte desta, não por necessária coação, mas
sim pelo estímulo da sua misericórdia, para assimilar a si o seu corpo; que é
a Igreja, da qual ele se dignou ser a cabeça, ou seja, assimilar seus membros
em seus santos e fiéis; de modo que, se por efeito das tentações humanas
algum deles se entristecesse e sofresse, nem por isso pensasse estar privado do
influxo da sua graça; e, assim como um coro fica alerta à voz que lhe dá o
tom, assim também o seu corpo soubesse da sua cabeça que por si mesmos, tais
movimentos não são pecado, senão somente indício da humana
fragilidade", Com maior concisão e não menor força estas passagens de
s. João Damasceno atestam a doutrina da Igreja: "O Deus todo tomou todo o
homem, e o todo se uniu ao todo para proporcionar a salvação do homem todo. De
outra maneira não teria ele podido sanar aquilo que não
assumiu". "Tomou, pois, tudo para santificar tudo".
4) O simbolismo natural do coração de Jesus Cristo
afirmado veladamente na Sagrada Escritura e nos santos Padres
afirmado veladamente na Sagrada Escritura e nos santos Padres
26. Bem verdade é que nem os autores sagrados, nem os Padres
da Igreja que citamos, e outros semelhantes, embora provem abundantemente que
Jesus Cristo esteve sujeito aos sentimentos e afetos humanos, e que, por isso
precisamente, tomou a natureza humana a fim de nos proporcionar a eterna
salvação, contudo não atribuem concretamente ditos afetos ao seu coração
fisicamente considerado, apontando nele o símbolo do seu amor infinito. Embora
os evangelistas e os outros autores sacros não nos descrevam abertamente o
coração do nosso Redentor não menos vivo e sensível do que o nosso, e as
palpitações e estremecimentos devidos às diversas emoções e afetos da sua
alma e à ardentíssima caridade da sua dupla vontade, todavia freqüentemente
põem em relevo o seu divino amor e as emoções sensíveis com ele
relacionadas: o desejo, a alegria, a tristeza, o temor e a ira, consoante as
expressões do seu olhar, das suas palavras e dos seus gestos. E,
principalmente, o rosto adorável de nosso Salvador foi, sem dúvida, o índice
e como que o espelho fidelíssimo dos afetos que, comovendo-lhe de vários modos
a alma, à semelhança das ondas que se entrechocam, chegavam ao seu coração
santíssimo e lhe excitavam as pulsações. Na verdade, a propósito de Jesus
Cristo vale também o que o Doutor angélico, ensinado pela experiência,
observa em matéria de psicologia humana e dos fenômenos dela derivados:
"A turbação que a
ira produz repercute nos membros externos, e principalmente
naqueles em que mais se reflete a influência do coração, como são os olhos,
o semblante, a língua".
27. Com muita razão, pois, o coração do Verbo encarnado é
considerado índice e símbolo do tríplice amor com que o divino Redentor ama
continuamente o Eterno Pai e todos os homens. Ele é, antes de tudo, símbolo do
divino amor, que nele é comum com o Pai e com o Espírito Santo, e que só
nele, como Verbo encarnado, se manifesta por meio do caduco e frágil
instrumento humano, "pois nele habita corporalmente a plenitude da
divindade" (Cl 2,9). Ademais, o coração de Cristo é símbolo de
enérgica caridade, que, infundida em sua alma, constitui o precioso dote da sua
vontade humana, e cujos atos são dirigidos e iluminados por uma dupla e
perfeita ciência, a beatífica e a infusa. Finalmente, e isto de modo mais
natural e direto, o coração de Jesus é símbolo do seu amor sensível, já
que o corpo de Jesus Cristo, plasmado no seio imaculado da Virgem Maria por obra
do Espírito Santo, supera em perfeição, e portanto em capacidade perceptiva,
qualquer outro organismo humano.
28. Instruídos pelos sagrados textos e pelos
símbolos da fé acerca da perfeita consonância e harmonia reinante na alma
santíssima de Jesus Cristo, e a respeito do fato de haver ele dirigido com
finalidade redentora todas as manifestações do seu tríplice amor, com toda
segurança podemos contemplar e venerar no coração do Redentor divino a imagem
eloqüente da sua caridade e o testemunho da nossa redenção, e como que uma
mística escada para subir ao amplexo "de Deus nosso Salvador" (Tt
3, 4). Por isso, nas palavras, nos atos, nos ensinamentos, nos
milagres, e especialmente nas obras mais esplendorosas do seu
amor para conosco, como a instituição da divina eucaristia, a sua dolorosa
paixão e morte, a benigna doação de sua santíssima Mãe, a fundação da
Igreja para proveito nosso, e, finalmente, a missão do Espírito Santo sobre os
apóstolos e sobre nós, em todas essas obras, repetimos, devemos admirar outros
tantos testemunhos do seu tríplice amor, e meditar as pulsações do seu
coração, com as quais ele quis medir os instantes da sua peregrinação
terrena até o momento supremo em que, como atestam os evangelistas,
"clamando com grande voz, disse: Tudo está consumado. E, inclinando a
cabeça, entregou o espírito" (Mt 27, 50; Jo 19, 30). Então o seu coração
parou e deixou de bater, e o seu amor sensível permaneceu como que suspenso,
até que, triunfando da morte, ele se levantou do sepulcro. Depois que seu corpo
conseguiu o estado da glória sempiterna e se uniu novamente à alma do divino
Redentor, vitorioso da morte, o seu coração sacratíssimo nunca deixou nem
deixará de palpitar com imperturbável e plácida pulsação, nem tampouco
cessará de demonstrar o tríplice amor com que o Filho de Deus se une a seu Pai
eterno e à humanidade inteira, de quem é, com pleno direito, a cabeça
mística.
III PARTICIPAÇÃO ATIVA E PROFUNDA QUE TEVE
O SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS NA MISSÃO SALVADORA DO REDENTOR
O SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS NA MISSÃO SALVADORA DO REDENTOR
1) O sagrado coração de Jesus, símbolo de amor perfeito:
sensível, espiritual, humano e divino, durante a vida terrena do Salvador
29. Agora, veneráveis irmãos, para que destas piedosas
considerações possamos tirar abundantes e salutares frutos, bom é meditarmos
e contemplarmos brevemente os
múltiplos afetos humanos e divinos de nosso Salvador Jesus
Cristo, dos quais; durante o curso da sua vida mortal, o seu coração
participou e continua agora participando e não deixará de participar por toda
a eternidade. Nas páginas do Evangelho é onde principalmente encontraremos a
luz pela qual iluminados e fortalecidos poderemos penetrar no segredo deste
divino coração, e admirar com o Apóstolo das gentes "as abundantes
riquezas da graça (de Deus) na bondade usada conosco por amor de Jesus
Cristo" (Ef 2,7).
30. O adorável coração de Jesus Cristo pulsa de amor ao
mesmo tempo humano e divino desde que a virgem Maria pronunciou aquela palavra
magnânima: "Fiat", e o Verbo de Deus, como nota o Apóstolo, "ao
entrar no mundo disse: Não quiseste sacrifício nem oferenda, mas me
apropriaste um corpo; holocaustos pelo pecado não te agradaram. Então disse:
Eis que venho: segundo está escrito de mim no princípio do livro, para
cumprir, ó Deus, a tua vontade... Por esta vontade, pois, somos santificados
pela oblação do corpo de Cristo feita uma só vez" (Hb 10,5-7.10). De
maneira semelhante palpitava de amor o seu coração, em perfeita harmonia com
os afetos da sua vontade humana e com o seu amor divino, quando, na casa de
Nazaré, ele mantinha aqueles celestiais colóquios com sua dulcíssima Mãe e
com seu pai putativo, s. José, a quem obedecia e com quem colaborava no
fatigante ofício de carpinteiro. Esse mesmo tríplice amor movia o seu
coração nas suas contínuas excursões apostólicas, quando realizava aqueles
inúmeros milagres, quando ressuscitava os mortos ou restituía a saúde a toda
sorte de enfermos, quando sofria aqueles trabalhos, suportava o suor, a fome e a
sede; nas vigílias noturnas passadas em oração a seu Pai amado; e,
finalmente, nos discursos que pronunciava e nas parábolas que propunha,
especialmente naquelas que tratam da misericórdia, como a da dracma
perdida, a da ovelha desgarrada e a do filho pródigo. Nessas palavras e nessas
obras, como diz Gregório Magno, manifesta-se o próprio coração de Deus.
"Conhece o coração de Deus nas palavras de Deus, para que com mais ardor
suspires pelas coisas eternas".
31. De amor ainda maior pulsava o coração de Jesus Cristo
quando da sua boca saíam palavras que inspiravam amor ardente. Assim, para dar
algum exemplo, quando, ao ver as turbas cansadas e famintas, ele disse:
"Tenho compaixão desta multidão" (Mc 8, 2), e quando, ao avistar
Jerusalém, a sua cidade predileta, destinada a uma ruína fatal por causa da
sua obstinação no pecado, exclamou: "Jerusalém, Jerusalém, que matas os
profetas e apedrejas os que te são enviados: quantas vezes eu quis recolher
teus filhos, como a galinha recolhe debaixo das asas os seus pintinhos, e não o
quiseste!" (Mt 23, 37). O seu coração também palpitou de amor para com
seu Pai, e de santa indignação, quando ele viu o comércio sacrílego que se
fazia no templo, e verberou os violadores com estas palavras: "Escrito
está: minha casa será chamada casa de oração; mas vós fizestes dela uma
espelunca de ladrões" (Mt 21, 13).
32. Pois o seu coração bateu particularmente de amor e de
pavor quando ele viu iminente a hora dos seus cruéis padecimentos, e quando
experimentando uma repugnância natural às dores e à morte, exclamou:
"Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice" (Mt 26,39);
palpitou com amor invicto e com suma amargura quando, ao receber o beijo do
traidor, dirigiu-lhe aquelas palavras que parecem o convite último do seu
coração misericordioso ao amigo que com ânimo ímpio, infiel e obstinado,
devia
entregá-lo aos seus algozes: "Amigo, a que vieste? Com
um beijo entregas o Filho do homem?" (Mt 26, 50; Lc 22, 48); palpitou de
compaixão e de amor íntimo quando disse às piedosas mulheres que choravam a
sua imerecida condenação ao suplício da cruz: "Filhas de Jerusalém, não
choreis por mim; chorai por vós mesmas e por vossos filhos..., pois, se assim
tratam a árvore verde, que se não fará à seca?" (Lc 23, 28.31).
33. Finalmente, quando o divino Redentor pendia da cruz,
sentiu o seu coração arder dos mais vários e veementes afetos, isto é, de
afetos de amor ardente, de consternação, de misericórdia, de desejo
inflamado, de paz serena; afetos claramente manifestados naquelas palavras:
"Pai, perdoa-lhes; porque eles não sabem o que fazem" (Lc 23, 34);
"Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" (Mt 27, 46); "Em
verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso" (Lc 23, 43);
"Tenho sede" (Jo 19, 28); "Pai, nas tuas mãos entrego meu
espírito" (Lc 23, 46).
2) A eucaristia, a santíssima virgem
e o sacerdócio são dons do coração amado de Jesus
e o sacerdócio são dons do coração amado de Jesus
34.
Quem poderá descrever dignamente as pulsações do coração divino, índices
do seu infinito amor, naqueles momentos em que ele deu aos homens os seus mais
apreciados dons, isto é, a si mesmo no sacramento da eucaristia, sua mãe
santíssima, e a participação no oficio sacerdotal?
35. Ainda antes de
celebrar a última ceia com seus discípulos, ao pensar em que ia instituir o
sacramento do seu corpo e do seu sangue, com cuja efusão devia confirmar-se a
nova aliança, sentiu o seu coração agitado de intensa emoção, que ele
manifestou aos seus apóstolos com estas palavras: "Ardentemente desejei
comer convosco este cordeiro pascal antes da minha paixão" (Lc
22, 15); emoção que, sem dúvida, foi ainda mais veemente
quando ele "tomou o pão, deu graças, partiu-o e deu-o a eles, dizendo:
'Isto é meu corpo, que se dá por vós; fazei isto em memória de mim'. Do
mesmo modo tomou o cálice, depois de haver ceado, dizendo: 'Este cálice é
a
nova aliança em meu sangue, que por vós será derramado'"(Lc 22, 19-20).
36. Com razão, pois, pode-se afirmar que a divina
eucaristia, como sacramento que ele dá aos homens e como sacrifício que ele
mesmo continuamente imola "desde o nascente até o poente" (Ml 1, 11),
e também o sacerdócio, são, sem dúvida, dons do sagrado coração de Jesus.
37. Dom igualmente precioso do mesmo sagrado coração é,
como indicávamos, a santíssima Virgem, Mãe excelsa de Deus e Mãe amadíssima
de todos nós, era justo que o gênero humano tivesse por mãe espiritual aquela
que foi mãe natural do nosso Redentor, a ele associada na obra de regeneração
dos filhos de Eva para a vida da graça. A propósito disso, escreve a respeito
dela santo Agostinho: "Evidentemente ela é mãe dos membros do Salvador,
que somos nós, porque com a sua caridade cooperou para que nascessem na Igreja
os fiéis, que são membros daquela cabeça".
38. Ao dom incruento de si mesmo sob as espécies do pão e
do vinho, Jesus Cristo nosso Salvador quis unir, como testemunho da sua caridade
íntima e infinita, o sacrifício cruento da cruz. Fazendo isso, deu exemplo
daquela sublime caridade que com as seguintes palavras ele mostrara aos seus
discípulos como meta suprema de amor: "Ninguém tem amor maior do que
aquele que dá sua vida pelos amigos" (Jo 15,13). Pelo que o amor de
Jesus Cristo, Filho de Deus, revela no sacrifício do
Gólgota, de modo o mais eloqüente, o amor do próprio Deus: "Nisto
conhecemos a caridade de Deus: em haver ele dado sua vida por nós; e assim nós
devemos dar a nossa vida por nossos irmãos" (1 Jo 3, 16). Certamente, o
divino Redentor foi crucificado mais pela força do amor do que pela violência
dos algozes, e o seu holocausto voluntário é dom supremo feito a cada um dos
homens, segundo a incisiva expressão do Apóstolo: "Amou-me e entregou-se
por mim" (Gl 2, 20).
3) Também a Igreja e os sacramentos são dons do sagrado
coração de Jesus
39. Não se pode, pois, duvidar de que, participando
intimamente da vida do Verbo encarnado, e pelo mesmo motivo sendo, não menos do
que os demais membros da sua natureza humana, como que instrumento conjunto da
Divindade na realização das obras da graça e da onipotência divina, o
sagrado coração de Jesus é também símbolo legítimo daquela imensa caridade
que moveu o nosso Salvador a celebrar, com o derramamento do seu sangue, o seu
místico matrimônio com a Igreja: "Sofreu a paixão por amor à Igreja que
ele devia unir a si como esposa".
Portanto, do coração ferido do
Redentor nasceu a Igreja, verdadeira administradora do sangue da
redenção, e
do mesmo coração flui abundantemente a graça dos sacramentos, na qual os
filhos da Igreja bebem a vida sobrenatural, como lemos na sagrada
liturgia:
"Do coração aberto nasce a Igreja desposada com Cristo... Tu, que do
coração fazes manar a graça". A respeito desse símbolo, que nem
mesmo dos antigos Padres, escritores e
eclesiásticos foi desconhecido, o Doutor comum, fazendo-se
eco deles, assim escreve: "Do lado de Cristo brotou água para lavar e
sangue para redimir. Por isso, o sangue é próprio do sacramento da eucaristia;
a água, do sacramento do batismo, o qual, entretanto, tem força para lavar em
virtude do sangue de Cristo". O que aqui se afirma do lado de Cristo,
ferido e aberto pelo soldado, cumpre aplicá-lo ao seu coração, ao qual, sem
dúvida, chegou a lançada desfechada pelo soldado precisamente para que
constasse de maneira certa a morte de Jesus Cristo. Por isso, durante o curso
dos séculos, a ferida do coração sacratíssimo de Jesus, morto já para esta
vida mortal, tem sido a imagem viva daquele amor espontâneo com que Deus
entregou seu Unigênito pela redenção dos homens, e com o qual Cristo nos amou
a todos tão ardentemente que a si mesmo se imolou como hóstia cruenta no
Calvário: "Cristo amou-nos e ofereceu-se a Deus em oblação e hóstia de
odor suavíssimo" (Ef 5, 2).
4) O sagrado coração de Jesus,
símbolo do seu tríplice amor a humanidade
na vida gloriosa do céu
símbolo do seu tríplice amor a humanidade
na vida gloriosa do céu
40. Depois que o nosso Salvador subiu ao céu com seu corpo
glorificado, e se sentou à direita de Deus Pai, não tem cessado de amar sua
esposa, a Igreja, com aquele amor inflamado que palpita no seu coração. Traz
nas mãos, nos pés e no lado os esplendentes sinais das suas feridas, troféus
da sua tríplice vitória: contra o demônio, contra o pecado e contra a morte.
E traz no seu coração, como em preciosa arca aqueles imensos tesouros de
méritos, frutos dessa tríplice vitória, os quais ele com largueza distribui
ao gênero humano. É essa uma verdade consoladora, ensinada pelo Apóstolo das
gentes quando
escreve: "Ao subir para o alto, levou consigo cativa uma
grande multidão de cativos e derramou seus dons sobre os homens... Aquele que
desceu, esse mesmo foi o que ascendeu sobre todos os céus, para dar cumprimento
a todas as coisas" (Ef 4, 8.10).
5) Os dons do Espírito Santo
também são dons do coração adorável de Jesus
também são dons do coração adorável de Jesus
41. A missão do Espírito Santo junto aos discípulos é o
primeiro e esplêndido sinal do seu amor munificente, depois da sua subida
triunfal à direita do Pai. Aos dez dias, o Espírito Paráclito, dado pelo Pai
celestial, baixou sobre eles, reunidos no cenáculo, segundo a promessa que ele
lhes fizera na última ceia: "Rogarei ao Pai, e ele vos dará outro
Consolador para estar convosco eternamente" (Jo 14, 16). O qual Espírito
Paráclito, sendo, como é, o amor mútuo pessoal com que o Pai ama o Filho e o
Filho ama o Pai, por ambos é enviado, e, sob forma de línguas de fogo, infunde
na alma dos discípulos a abundância da caridade divina e dos demais carismas
celestes. Esta infusão da caridade divina brotou também do coração de nosso
Salvador, "no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da
ciência" (Cl 2, 3). Essa caridade é, portanto, dom do coração de Jesus
e do seu Espírito. A esse comum Espírito do Pai e do Filho deve-se o
nascimento e a propagação admirável da Igreja no meio de todos os povos
pagãos, contaminados pela idolatria, pelo ódio fraterno, pela corrupção de
costumes e pela violência. Foi essa divina caridade, dom preciosíssimo do
coração de Cristo e do seu Espírito, que deu aos apóstolos e aos mártires
aquela fortaleza com que eles lutaram até uma morte heróica, para pregarem a
verdade evangélica e testemunhá-la com o seu sangue; foi ela que deu aos
doutores da Igreja aquele zelo intenso por ilustrar e defender a fé católica;
foi ela que alimentou as virtudes nos
confessores e os excitou a levarem a cabo obras admiráveis e
úteis, para a própria santificação, para a salvação eterna e temporal do
próximo; e, finalmente, foi ela que persuadiu as virgens a espontânea e
alegremente renunciarem aos gozos dos sentidos e se consagrarem inteiramente ao
amor do esposo celeste. A essa divina caridade, que transborda do coração do
Verbo encarnado e por obra do Espírito Santo se difunde nas almas de todos os
crentes, o Apóstolo das gentes entoou aquele hino de vitória que exalta a um
tempo o triunfo de Jesus Cristo cabeça e o triunfo dos membros do seu corpo
místico, sobre todos quantos de algum modo obstam ao estabelecimento do reino
divino de amor entre os homens: "Quem poderá separar-nos do amor de
Cristo? A tribulação? Ou a angústia? Ou a fome? Ou a nudez? Ou o risco? Ou a
perseguição? Ou o cutelo?... Por meio de todas essas coisas triunfamos por
virtude daquele que nos amou. Pelo qual estou seguro de que nem a morte, nem a
vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem o presente, nem o
futuro, nem a força, nem o que há de mais alto, nem de mais profundo, nem
outra criatura, poderá jamais separar-nos do amor de Deus que se funda em Jesus
Cristo nosso Senhor" (Rm 8,35.37-39).
6) O culto ao coração sacratíssimo de Jesus
é o culto da pessoa do Verbo encarnado
é o culto da pessoa do Verbo encarnado
42. Nada, portanto, proíbe que adoremos o coração
sacratíssimo de Jesus Cristo, enquanto é participante, símbolo natural e
sumamente expressivo daquele amor inexaurível em que ainda hoje o divino
Redentor arde para com os homens. Mesmo quando já não está submetido às
perturbações desta vida mortal, ainda então ele vive, palpita, e está unido
de modo indissolúvel com a pessoa do Verbo divino, e, nela e por ela, com a sua
divina vontade. Superabundando o coração do Cristo de
amor divino e humano, e sendo imensamente rico com os
tesouros de todas as graças que o nosso Redentor adquiriu com sua vida, seus
padecimentos e sua morte, ele é, sem dúvida, uma fonte perene daquela
caridade que o seu Espírito infunde em todos os membros do seu corpo místico.
43. Assim, pois, o coração do nosso Salvador reflete de
certo modo a imagem da divina pessoa do Verbo, e, igualmente, das suas duas
naturezas: humana e divina; e nele podemos considerar não só um símbolo, mas
também como que um compêndio de todo o mistério da nossa redenção. Quando
adoramos o coração de Jesus Cristo, nele e por ele adoramos tanto o amor
incriado do Verbo divino como seu amor humano e os seus demais afetos e
virtudes, já que um e outro amor moveu o nosso Redentor a imolar-se por nós e
por toda a Igreja, sua esposa, segundo a sentença do Apóstolo: "Cristo
amou a sua Igreja e sacrificou-se por ela para santificá-la, lavando-a no
batismo de água com a palavra de vida, a fim de fazê-la comparecer perante si
cheia de glória, sem mancha, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e
imaculada" (Ef 5, 25-27).
44. Assim como amou a Igreja, Cristo continua amando-a
intensamente, com aquele tríplice amor de que falamos (cf. 1 Jo 2,1); e esse
amor é que o impele a fazer-se nosso advogado para nos obter do Pai graça e
misericórdia, "estando sempre vivo para interceder por nós" (Hb
7, 25). As preces que brotam do seu inesgotável amor, dirigidas ao Pai, não
sofrem interrupção alguma. Como nos dias da sua carne" (Hb 5,7), também
agora, que está triunfante no céu, ele suplica o Pai com não menor eficácia;
e aquele que "amou tanto o mundo que deu seu Filho unigênito, afim de que
todos os que nele crêem não pereçam, mas vivam vida eterna" (Jo 3,16).
Ele mostra o seu coração vivo e como ferido e inflamado de um amor mais
ardente do que quando, já exânime, o feriu a lança do
soldado romano: "Por isto foi ferido (o teu coração), para que pela
ferida visível víssemos a ferida invisível do amor".
45. Por conseguinte, não pode haver dúvida alguma de que,
ante as súplicas de tão grande advogado, e feitas com tão veemente amor, o
Pai celestial, "que não perdoou seu próprio filho, mas o entregou por
todos nós" (Rm 8, 32), por meio dele derramará incessantemente sobre
todos os homens a abundância das suas graças divinas.
IV
NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO PROGRESSIVO
DO CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO PROGRESSIVO
DO CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
1) Albores do culto ao sagrado
coração na devoção
às chagas sacrossantas da paixão
às chagas sacrossantas da paixão
46. À vossa consideração, veneráveis irmãos, e à do
povo cristão quisemos expor em suas linhas gerais a íntima natureza e as
perenes riquezas do culto ao coração sacratíssimo de Jesus, atendo-nos à
doutrina da revelação divina como à sua fonte primária. Estamos persuadidos
de que estas nossas reflexões, ditadas pelo próprio ensinamento do Evangelho,
mostraram claramente como, em substância, este culto não é outra coisa senão
o culto ao amor divino e humano do Verbo encarnado, e também o culto àquele
amor com que o Pai e o Espírito Santo amam os homens pecadores. Porque, como
observa o Doutor angélico, a caridade das três Pessoas divinas é
o princípio da redenção humana nisto que inundando
copiosamente a vontade humana de Jesus Cristo e o seu coração adorável, com a
mesma caridade o induziu a derramar o seu sangue para nos resgatar da servidão
do pecado: "Com um batismo tenho de ser batizado, e como me sinto
oprimido enquanto ele não se cumpre!" (Lc 12,50).
47. Aliás, é
persuasão nossa que o culto tributado ao amor de Deus e de Jesus Cristo para
com o gênero humano, através do símbolo augusto do coração transfixado do
Redentor, nunca esteve completamente ausente da piedade dos fiéis, embora a sua
manifestação clara e a sua admirável difusão em toda a Igreja se haja
realizado em tempos não muito distantes de nós, sobretudo depois que o
próprio Senhor revelou este divino mistério a alguns de seus filhos após
havê-los cumulado com abundância de dons sobrenaturais, e os elegeu para seus
mensageiros e arautos.
48. De fato, sempre houve almas especialmente consagradas a
Deus que, inspirando-se nos exemplos da excelsa mãe de Deus, dos apóstolos e
de insignes padres da Igreja, tributaram culto de adoração, de ação de
graças e de amor à humanidade santíssima de Cristo, e de modo especial às
feridas abertas no seu corpo pelos tormentos da paixão salvadora.
49. Aliás, como não reconhecer nas próprias palavras:
"Senhor meu e Deus meu" (Jo 20,28), pronunciadas pelo apóstolo Tomé
e reveladoras da sua súbita transformação de incrédulo em fiel, uma clara
profissão de fé, de adoração e de amor, que da humanidade chagada do
Salvador se elevava até a majestade da Pessoa divina?
50. Mas, ainda que o coração ferido do Redentor tenha
sempre levado os homens a venerarem o seu infinito amor a
tempos sempre tiveram valor as palavras do profeta Zacarias
que o evangelista João aplicou a Jesus crucificado: "Verão a quem
traspassaram" (Jo 19,37; cf. Zc 12,10), todavia cumpre reconhecer que só
gradualmente esse coração chegou a ser objeto de culto especial, como imagem
do amor humano e divino do Verbo encarnado.
2)Princípio e progresso do culto ao
sagrado coração
na Idade Média e nos séculos seguintes
na Idade Média e nos séculos seguintes
51. Querendo agora indicar somente as etapas gloriosas
percorridas por este culto na história da piedade cristã, mister é recordar,
antes de tudo, os nomes de alguns daqueles que bem podem ser considerados os
porta-estandartes desta devoção, a qual, em forma privada e de modo gradual,
foi-se difundindo cada vez mais nos institutos religiosos. Assim, por exemplo,
distinguiram-se por haver estabelecido e promovido cada vez mais este culto ao
coração sacratíssimo de Jesus: s. Boaventura, s. Alberto Magno, s. Gertrudes,
s. Catarina de Sena, o Beato Henrique Suso, s. Pedro Canísio e s. Francisco de
Sales. A s. João Eudes deve-se o primeiro ofício litúrgico em honra do
sagrado coração de Jesus, cuja festa se celebrou pela primeira vez, com o
beneplácito de muitos bispos de França, a 20 de outubro de 1672. Mas entre
todos os promotores desta excelsa devoção merece lugar especial s. Margarida
Maria Alacoque, que, com a ajuda do seu diretor espiritual, o beato Cláudio de
la Colombière, e com o seu ardente zelo, conseguiu, não sem admiração dos
féis, que este culto adquirisse um grande desenvolvimento e, revestido das
características do amor e da reparação, se distinguisse das demais formas da
piedade cristã.
52. Basta essa evocação daquela época em que se propagou o
culto do coração de Jesus para nos convencermos plenamente de que o seu
admirável desenvolvimento se deve principalmente ao fato de se achar ele em
tudo conforme com a índole da religião cristã, que é religião de amor. Por
conseguinte, não se pode dizer nem que este culto deve a sua origem a
revelações privadas, nem que apareceu de improviso na Igreja, mas sim que
brotou espontaneamente da fé viva, da piedade fervorosa de almas prediletas
para com a pessoa adorável do Redentor e para com aquelas suas gloriosas
feridas, testemunhos do seu amor imenso que intimamente comovem os corações.
Evidente é, portanto, que as revelaçães com que foi favorecida s. Margarida
Maria não acrescentaram nada de novo à doutrina católica. A importância
delas consiste em que – ao mostrar o Senhor o seu coração sacratíssimo – de
modo extraordinário e singular quis atrair a consideração dos homens para a
contemplação e a veneração do amor misericordioso de Deus para com o gênero
humano. De fato, mediante manifestação tão excepcional, Jesus Cristo
expressamente e repetidas vezes indicou o seu coração como símbolo com que
estimular os homens ao conhecimento e à estima do seu amor; e ao mesmo tempo
constituiu-o sinal e penhor de misericórdia e de graça para as necessidades da
Igreja nos tempos modernos.
3) Aprovação pontifícia da festa
do coração sacratíssimo de Jesus
do coração sacratíssimo de Jesus
53. Prova evidente de que este culto promana das próprias
fontes do dogma católico dá-a o fato de haver a aprovação da festa
litúrgica pela Sé Apostólica precedido a aprovação dos escritos de s.
Margarida Maria. Na realidade, independentemente de toda revelação privada, e
secundando só os desejos dos féis, por decreto de 25 de janeiro de 1765,
aprovado pelo nosso predecessor Clemente XIII, a 6 de fevereiro do mesmo ano, a Sagrada
Congregação dos Ritos concedeu aos bispos da Polônia e à arquiconfraria
romana do sagrado coração de Jesus a faculdade de celebrar a festa litúrgica.
Com esse ato, quis a Santa Sé que tomasse novo incremento um culto já em
vigor, cujo fim era "reavivar simbolicamente a lembrança do amor
divino" que levara o Salvador a fazer-se vítima de expiação pelos
pecados dos homens.
54. A essa primeira aprovação, dada em forma de
privilégïo e limitadamente, seguiu-se, a distância de quase um século, outra
de importância muito maior, e expressa em termos mais solenes. Referimo-nos ao
decreto da Sagrada Congregação dos Ritos de 23 de agosto de 1856,
anteriormente mencionado, com o qual o nosso predecessor Pio IX, de imortal
memória, acolhendo as súplicas dos bispos da França e de quase todo o orbe
católico, estendeu a toda a Igreja a festa do coração sacratíssimo de Jesus,
e prescreveu a sua celebração litúrgica. Esse fato merece ser recomendado
à lembrança perene dos fiéis, pois, como vemos escrito na própria liturgia
da festa, "desde então o culto do sacratíssimo coração de Jesus,
semelhante a um rio que transborda, superou todos os obstáculos e difundiu-se
pelo mundo todo".
55. De quanto até agora expusemos, veneráveis irmãos,
aparece evidente que é nos textos da Sagrada Escritura, na tradição e na
sagrada liturgia que os fiéis hão de encontrar principalmente os mananciais
límpidos e profundos do culto ao coração sacratíssimo de Jesus, se desejam
penetrar na sua íntima natureza e tirar da sua piedosa meditação alimento e
incremento do fervor religioso. Iluminada, e penetrando nela mais intimamente mediante esta
meditação assídua, a alma fiel não poderá deixar de chegar àquele doce
conhecimento da caridade de Cristo no qual se resume toda a vida cristã, tal
como, instruído pela própria experiência, o ensina o Apóstolo: "Por
esta causa dobro meus joelhos ante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo..., para
que, segundo as riquezas de sua glória, vos conceda por meio do seu Espírito
serdes fortalecidos em virtude no homem interior, e para que Cristo habite pela
fé nos vossos corações, estando vós arraigados e cimentados em caridade; a
~m de que possais conhecer também aquele amor de Cristo que sobrepuja todo
conhecimento, para serdes plenamente cumulados de toda a plenitude de Deus"
(Ef 3,14.16-19). Dessa plenitude universal é precisamente imagem esplendida o
coração de Jesus Cristo: plenitude da misericórdia própria do Novo
Testamento, no qual "Deus nosso Salvador manifestou a sua benignidade e
amor para com os homens" (Tt 3,4); pois "Deus não enviou seu Filho ao
mundo para condenar o mundo, mas sim para que, por meio dele, o mundo se
salve" (Jo 3,17).
4) Espiritualidade e excelência
do culto ao coração sacratíssimo de Jesus
56. Desde quando promulgou os primeiros documentos oficiais
relativos ao culto do coração sacratíssimo de Jesus, tem sido constante
persuasão da Igreja, mestra da verdade para os homens, que os elementos
essenciais desse culto, quer dizer, os atos de amor e de reparação tributados
ao amor infinito de Deus para com os homens, longe de estarem contaminados de
materialismo e de superstição, constituem uma forma de piedade em que se põe
plenamente em prática aquela religião espiritual e verdadeira que o próprio
Salvador anunciou à samaritana: "Já chega o tempo, e já estamos nele, em
que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em
verdade" (Jo 4,23-24).
57. Lícito não é, portanto, afirmar que a contemplação
do coração físico de Jesus impede de chegar ao amor íntimo de Deus e retarda
o progresso da alma no caminho que leva à posse das mais excelsas virtudes. A
Igreja repele completamente esse falso misticismo, como, por boca do nosso
predecessor Inocêncio XI, de feliz memória, condenou a doutrina dos que
divulgavam que não devem (as almas desta via interior) fazer atos de amor à
santíssima Virgem, aos santos ou a humanidade de Cristo, porque, sendo
sensíveis estes objetos, o amor que a eles se dirige também há de ser
sensível. Nenhuma criatura, nem mesmo a santíssima Virgem e os santos, deve
penetrar no nosso coração, porque só Deus quer ocupá-lo e possuí-lo". Os
que assim pensam são, naturalmente, de opinião que o simbolismo do
coração de Cristo não se estende a mais do que ao seu amor sensível, e
que,
por conseguinte, não pode constituir novo fundamento do culto de latria,
culto
reservado só àquilo que é essencialmente divino. Ora, interpretação
semelhante das sagradas imagens, todos vêem que é absolutamente falsa,
porque
lhes coarcta injustamente o significado. Contrária é a isso a opinião e o
ensino dos teólogos católicos, e entre eles s. Tomás assim escreve: "Às
imagens tributa-se culto religioso, não consideradas em si mesmas, quer
dizer,
enquanto realidades, mas sim enquanto imagens que nos levam até Deus
encarnado.
O movimento da alma para a imagem enquanto imagem não pára nesta, mas
tende ao
objeto por ela representado. Por conseguinte, do fato de tributar culto
religioso às imagens de Cristo não resulta um culto de latria diverso nem uma virtude de
religião
diferente". À própria pessoa do Verbo chega, pois, o culto relativo
tributado às suas imagens, sejam estas as relíquias da sua acerba paixão,
seja a imagem que supera todas em valor expressivo, quer dizer, o coração
ferido de Cristo crucificado.
58. E, assim, do elemento corpóreo, que é o coração de
Jesus Cristo, e do seu natural simbolismo, é legítimo e justo que, levados
pelas asas da fé, nos elevemos não só à contemplação do seu amor
sensível, porém a mais alto, até à consideração e adoração do seu
excelentíssimo amor infuso, e, finalmente, num vôo sublime e doce ao mesmo
tempo, até à meditação e adoração do amor divino do Verbo encarnado; já
que à luz da fé, pela qual cremos que na pessoa de Cristo estão unidas a
natureza humana e a natureza divina, podemos conceber os estreitíssimos
vínculos que existem entre o amor sensível do coração físico de Jesus e o
seu duplo amor espiritual, o humano e o divino. Em realidade, não devem esses
amores ser considerados simplesmente como coexistentes na adorável pessoa do
Redentor divino, mas também como unidos entre si com vínculo natural, nisto
que ao amor divino estão subordinados o humano, o espiritual e o sensível, os
quais são uma representação analógica daquele. Com isso não pretendemos que
no coração de Jesus se deva ver e adorar a chamada imagem formal, quer dizer,
a representação perfeita e absoluta do seu amor divino, não sendo possível,
como não é, representar adequadamente por qualquer imagem criada a íntima
essência desse amor; mas a alma fiel, venerando o coração de Jesus, adora
juntamente com a Igreja o símbolo e como que a marca da caridade divina,
caridade que com o coração do
Verbo encarnado chegou até a amar o gênero humano
contaminado de tantos crimes.
59. Portanto, neste assunto tão importante como delicado, é
necessário ter sempre presente que a verdade do simbolismo natural, que
relaciona o coração físico de Jesus com a pessoa do Verbo, repousa toda na
verdade primária da união hipostática; quem isto negasse renovaria erros mais
de uma vez condenados pela Igreja, por contrários à unidade da pessoa de
Cristo em duas naturezas íntegras e distintas.
60. Essa verdade fundamental permite-nos entender como o coração de Jesus é o coração de uma pessoa divina, quer dizer, do Verbo
encarnado, e que, por conseguinte, representa e nos põe ante os olhos todo o
amor que ele nos teve e ainda nos tem. E aqui está a razão por que, na
prática, o culto ao sagrado coração é considerado como a mais completa
profissão da religião cristã. Verdadeiramente, a religião de Jesus Cristo
funda-se toda no Homem-Deus mediador; de maneira que não se pode chegar ao
coração de Deus senão passando pelo coração de Cristo, conforme o que ele
mesmo afirmou: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai
senão por mim" (Jo 14,6). Assim sendo, facilmente deduzimos que, pela
própria natureza das coisas, o culto ao sacratíssimo coração de Jesus é o
culto ao amor com que Deus nos amou por meio de Jesus Cristo, e, ao mesmo tempo,
o exercício do amor que nos leva a Deus e aos outros homens; ou, dito por outra
forma, este culto dirige-se ao amor de Deus para conosco, propondo-o como objeto
de adoração, de ação de graças e de imitação; e tem por fim a perfeição
do nosso amor a Deus e aos homens mediante o cumprimento cada vez mais generoso
do mandamento "novo", que o divino Mestre legou como sagrada herança
aos seus apóstolos quando lhes disse: "Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, como eu vos
amei... O meu preceito é que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei"
(Jo 13,34; 15,12). Esse mandamento, verdadeiramente, é "novo" e
"próprio" de Cristo; porque, como diz s. Tomás de Aquino:
"Pouca diferença há entre o Antigo e o Novo Testamento; pois, como diz
Jeremias: 'Farei um pacto novo com a casa de Israel' (Jr 31,31). Porém que este
mandamento se praticasse no Antigo Testamento a impulsos de um santo temor e
amor, isto pertencia ao Novo Testamento; de sorte que este mandamento existia na
antiga lei não como próprio dela, porém como preparação da nova
lei".
V
EXORTAÇÃO À PRÁTICA
MAIS PURA E MAIS EXTENSA DO CULTO
AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
EXORTAÇÃO À PRÁTICA
MAIS PURA E MAIS EXTENSA DO CULTO
AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
1) Convite a compreender e praticar melhor
as várias formas da devoção ao coração de Jesus
as várias formas da devoção ao coração de Jesus
61. Antes de terminarmos as considerações tão belas e tão
consoladoras que vos estamos fazendo sobre a natureza autêntica deste culto e a
sua cristã excelência, nós, cônscios do ofício apostólico confiado em
primeiro lugar a s. Pedro depois que ele por três vezes professou o seu amor a
Jesus Cristo nosso Senhor, julgamos conveniente, veneráveis irmãos,
exortar-vos uma vez mais, e por vosso intermédio exortar todos os caríssimos
filhos que em Cristo temos, a que vos esforceis com crescente entusiasmo por
promover esta suavíssima devoção, pois confiamos que dela hão de brotar
grandes proveitos também nos nossos tempos.
62. Em verdade, se se ponderam devidamente os argumentos em
que se funda o culto ao coração ferido de Jesus, todos verão claramente não
se tratar aqui de uma forma qualquer de piedade, que se possa pospor a outras ou
ter em menos, mas sim de uma prática religiosa sumamente apta para conseguir a
perfeição cristã. Se segundo o conceito teológico tradicional, expresso pelo
Doutor angélico – "a devoção não é outra coisa senão a vontade pronta
de se dedicar a tudo o que se relaciona com o serviço de Deus", pode
haver serviço divino mais devido e mais necessário, e ao mesmo tempo mais
nobre e mais suave, daquele que se presta ao seu amor? Que coisa pode haver mais
grata e mais aceita a Deus do que o serviço que se faz à caridade divina, e
que se faz por amor, sendo, como é, todo serviço voluntário, de certo modo,
um dom, e constituindo o amor "o dom primeiro e origem de todos os dons
gratuitos"? Digna é, pois, de sumo apreço uma forma de culto mediante a
qual o homem ama e honra mais a Deus e se consagra com maior facilidade e
liberdade à caridade divina; forma de culto que o nosso próprio Redentor se
dignou propor e recomendar ao povo cristão, e que os sumos pontífices
confirmaram com memoráveis documentos e enalteceram com grandes louvores. Por
isso, quem tivesse em pouco esse insigne benefício que Jesus Cristo deu à sua
Igreja, procederia temerária e perniciosamente, e ofenderia o próprio Deus.
63. Isso posto, não se pode duvidar de que os cristãos que
honram o sacratíssimo coração do Redentor cumprem o dever, por demais
gravíssimo, que eles têm de servir a Deus, e que justamente se consagram a si
mesmos e todas as suas coisas, seus sentimentos interiores e sua atividade exterior, ao seu Criador e Redentor, e que desse modo
observam aquele divino mandamento: "Amarás o Senhor teu Deus com todo o
teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas
forças" (Mc 12,30; Mt 22,37). Além disso, têm a certeza de que honrar a
Deus não os move principalmente o proveito pessoal, corporal ou espiritual,
temporal ou eterno, e sim a bondade do próprio Deus, a quem eles procuram
obsequiar com correspondência de amor, com atos de adoração e com a devida
ação de graças. Se assim não fora, o culto ao sacratíssimo coração de
Jesus não corresponderia ao caráter genuíno da religião cristã, visto que
com tal culto o homem não honraria principalmente o amor divino; e não sem
motivo, como às vezes sucede, poder-se-ia increpar de excessivo amor e
solicitude de si mesmos os que entendem mal esta nobilíssima devoção ou não
a praticam convenientemente.
64. Tenham, pois, todos a firme persuasão de que no culto ao
augustíssimo coração de Jesus o mais importante não são as práticas
externas de piedade, e que o motivo principal de abraçá-lo não deve ser a
esperança dos benefícios que Cristo nosso Senhor prometeu em revelações, e
estas privadas, precisamente para que os homens cumpram com mais fervor os
principais deveres da religião católica, a saber: o dever do amor e o da
expiação, e assim também obtenham da melhor maneira o seu próprio proveito
espiritual.
65. Exortamos, pois, todos os nossos filhos em Cristo a
praticarem com entusiasmo esta devoção, tanto os que já costumam beber as
águas salutares que manam do coração do Redentor, como sobretudo os que, à
guisa de espectadores, olham de longe, com curiosidade e dúvida. Considerem
esses com atenção tratar-se, como já dissemos, de um culto desde há tempos
arraigado na Igreja, e
que se apóia solidamente nos próprios Evangelhos; de um
culto em favor do qual está claramente a tradição e a sagrada liturgia, e
que
os próprios pontífices romanos exaltaram com muitos e grandes louvores;
pois não se contentaram com instituir uma festa em honra do coração do
Redentor e
estendê-la a toda a Igreja, mas ainda tomaram a iniciativa de dedicar e
consagrar com rito solene todo o gênero humano ao mesmo sacratíssimo
coração. Considerem, finalmente, os frutos copiosos e consoladores que a
Igreja tem colhido desta devoção: inúmeras conversões à religião
católica, a fé de muitos reavivada, a união mais estreita dos cristãos com o
nosso amantíssimo Redentor; frutos esses todos que, sobretudo nestes últimos
decênios, têm sido observados com maior freqüência e esplendor.
66. Ao contemplarmos este magnífico espetáculo da
extensão
e do fervor com que a devoção ao sacratíssimo coração de Jesus se tem
propagado em toda classe de fiéis, sentimo-nos cheios de alegria e de
consolação; e, depois de darmos as devidas graças ao nosso Redentor, que
é
tesouro infinito de bondade, não podemos deixar de nos congratular
paternalmente com todos os que têm contribuído eficazmente para promover
este
culto, pertençam eles ao clero ou as fileiras dos simples féis.
2) Grande utilidade do culto ao sagrado coração
de Jesus nas atuais necessidades da Igreja
de Jesus nas atuais necessidades da Igreja
67. Veneráveis irmãos, embora a devoção ao sagrado
coração de Jesus tenha produzido em toda parte frutos salutares de vida cristã, contudo ninguém ignora que a
Igreja militante na terra, e sobretudo a sociedade civil,
ainda não alcançaram o grau de perfeição que corresponde aos desejos de
Jesus Cristo, esposo místico da Igreja e Redentor do gênero humano. Não são
poucos os filhos da Igreja que com numerosas manchas e rugas deturpam o rosto
materno que em si mesmos refletem; nem todos os cristãos brilham por santidade
de costumes, à qual por vocação divina são chamados; nem todos os pecadores
que em má hora abandonaram a casa paterna têm voltado para de novo vestir-se
nela com "a veste preciosa" (Lc 15,22) e pôr no dedo o anel, símbolo
de fidelidade para com o esposo de sua alma; nem todos os infiéis se
incorporaram ainda ao corpo místico de Cristo. Há mais. Porque, se bem que nos
encha de amarga dor o ver a fé definhar nos bons, e contemplar como, pelo falaz
atrativo dos bens terrenos, lhes decresce nas almas e aos poucos se apaga o fogo
da caridade divina, muito mais nos atormentam as maquinações dos ímpios, que,
agora mais do que nunca, parecem incitados pelo inimigo infernal no seu ódio
implacável e aberto contra Deus, contra a Igreja e, sobretudo, contra aquele
que representa na terra a pessoa do divino Redentor e a sua caridade para com os
homens, consoante a conhecidíssima frase do doutor de Milão, "(Pedro) é
interrogado sobre aquilo de que há dúvida, mas não o duvida o Senhor;
pergunta, não para saber, mas para ensinar àquele que, na sua ascensão ao
céu, ele nos deixava como vigário do seu amor".
68. Certamente, o ódio contra Deus e contra os que
legitimamente lhe fazem as vezes é o maior crime que o homem pode cometer,
criado como foi este à imagem e semelhança de Deus, destinado a gozar da sua
amizade perfeita e eterna no céu; visto que peio ódio a Deus o homem se afasta o mais possível do sumo Bem, sente-se impelido
a repelir de si e do seu próximo tudo quanto vem de Deus, tudo quanto une com
Deus, tudo quanto conduz a gozar de Deus, ou seja a verdade, a virtude, a paz e
a justiça.
69. Podendo, pois, observar que, por desgraça, cresce em
algumas partes o número dos que se jactam de ser inimigos do Senhor eterno, e
que os falsos princípios do "materialismo" se difundem teórica e
praticamente; e ouvindo como continuamente se exalta a licença desenfreada das
paixões, como estranharmos que em muitas almas se arrefeça a caridade, que é
a suprema lei da religião cristã, o fundamento mais firme da verdadeira e
perfeita justiça, o manancial mais abundante da paz e das castas delícias? Já
o advertiu o nosso Salvador: "Pela inundação dos vícios, arrefecer-se-á
a caridade de muitos" (Mt 24;12).
3) O culto ao sagrado coração de Jesus,
lábaro de salvação também para o mundo moderno
lábaro de salvação também para o mundo moderno
70. À
vista de tantos males que, hoje como nunca, transtornaram profundamente os
indivíduos, as famílias, as nações e o orbe inteiro, onde acharmos,
veneráveis irmãos, um remédio eficaz? Poderemos encontrar alguma devoção
que se avantaje ao culto augustíssimo do coração de Jesus, que corresponda
melhor à índole própria da fé católica, que com mais eficácia satisfaça
as necessidades atuais da Igreja e do gênero humano? Que homenagem religiosa
mais nobre, mais suave e mais salutar do que este culto que se dirige todo à
própria caridade de Deus? Por último, que pode haver de mais eficaz do que a
caridade de Cristo – que a devoção ao sagrado coração promove e fomenta cada dia mais
– para estimular os cristãos a
praticarem em sua vida a lei evangélica, sem a qual não é possível haver
entre os homens paz verdadeira, como claramente ensinam aquelas palavras do
Espírito Santo: "Obra da justiça será a paz"
71. Pelo que, seguindo o exemplo do nosso imediato
antecessor, queremos lembrar de novo a todos os nossos filhos em Cristo a
exortação que, ao expirar o século passado, Leão XIII, de feliz memória,
dirigiu a todos os cristãos e a quantos se sentiam sinceramente
preocupados com
a sua própria salvação e com a salvação da sociedade civil: "Vede hoje
ante vossos olhos um segundo lábaro consolador e divino: o sacratíssimo
coração de Jesus..., que brilha com refulgente esplendor por entre as
chamas.
Nele devemos pôr toda a nossa confiança; a ele devemos suplicar e dele
devemos
esperar a nossa salvação".
72. Também vivamente desejamos que todos os que se
gloriam
do nome de cristãos e lutam ativamente por estabelecer o reino de Jesus
Cristo
no mundo, considerem a devoção ao coração de Jesus como bandeira e
manancial
de unidade, de salvação e de paz. Ninguém pense que esta devoção
prejudique
no que quer que seja as outras formas de piedade com que, sob a direção
da
Igreja, o povo cristão venera o divino Redentor. Ao contrário, uma
fervorosa
devoção ao coração de Jesus fomentará e promoverá, sobretudo, o culto a
santíssima cruz, não menos do que o amor ao augustíssimo sacramento do
altar.
E, em realidade – como o evidenciam as revelações de Jesus Cristo a s.
Gertrudes e a s. Margarida Maria – podemos afirmar que ninguém chegará a
sentir
devidamente a respeito de Jesus Cristo crucificado se não for penetrando
nos arcanos do seu
coração: Nem será fácil
entender o ímpeto do amor com que Jesus Cristo se deu a nós por alimento
espiritual se não é fomentando a devoção ao coração eucarístico de
Jesus;
a qual – para nos valermos das palavras do nosso predecessor Leão XIII,
de
feliz memória – nos recorda "aquele ato de amor supremo com que,
entornando todas as riquezas do seu coração, afim de prolongar a sua
estada conosco até a consumação dos séculos, o nosso Redentor instituiu o
adorável
sacramento da eucaristia". Certamente, "não é pequena a parte que
na eucaristia teve o seu coração, sendo tão grande o amor do seu coração
com que ele nô-la deu".
73. Finalmente, desejando ardentemente opor segura barreira
as ímpias maquinações dos inimigos de Deus e da Igreja, como também fazer as
famílias e as nações voltarem ao amor de Deus e do próximo, não duvidamos
em propor a devoção ao sagrado coração de Jesus como escola eficacíssima de
caridade divina; dessa caridade divina sobre a qual se há de construir o reino
de Deus nas almas dos indivíduos, na sociedade doméstica e nas nações, como
sabiamente advertiu o nosso mesmo predecessor, de piedosa memória: "Da
caridade divina recebe o reino de Jesus Cristo a sua força e a sua beleza; o
seu fundamento e a sua síntese é amar santa e ordenadamente. Donde
necessariamente se segue o cumprir integralmente os próprios deveres, o não
violar os direitos alheios, o considerar os bens naturais como inferiores aos
sobrenaturais, e o antepor o amor de Deus a todas as coisas".
74. A fim de que a devoção ao coração augustíssimo de
Jesus produza frutos mais copiosos na família cristã e mesmo em toda a
humanidade, procurem os féis unir a ela estreitamente a devoção ao coração
imaculado da Mãe de Deus. Foi vontade de Deus que, na obra da redenção
humana, a santíssima virgem Maria estivesse inseparavelmente unida a Jesus
Cristo; tanto que a nossa salvação é fruto da caridade de Jesus Cristo e dos
seus padecimentos, aos quais foram intimamente associados o amor e as dores de
sua Mãe. Por isso, convém que o povo cristão, que de Jesus Cristo, por
intermédio de Maria, recebeu a vida divina, depois de prestar ao sagrado
coração o devido culto, renda também ao amantíssimo coração de sua Mãe
celestial os correspondentes obséquios de piedade, de amor, de agradecimento e
de reparação. Em harmonia com esse sapientíssimo e suavíssimo desígnio da
divina Providência, nós mesmo, por ato solene, dedicamos e consagramos a santa
Igreja e o mundo inteiro ao coração imaculado da santíssima Virgem Maria.
4) Convite para celebrar dignamente
o primeiro centenário da festa do sagrado coração
de Jesus na Igreja universal
o primeiro centenário da festa do sagrado coração
de Jesus na Igreja universal
75. Completando-se felizmente este ano, como antes indicamos,
o primeiro século da instituição da festa do sagrado coração de Jesus em
toda a Igreja, instituição promovida pelo nosso predecessor Pio IX, de feliz
memória, é vivo desejo nosso, veneráveis irmãos, que o povo cristão celebre
este centenário solenemente em toda parte, com atos públicos de adoração, de
ação de graças e de reparação ao coração divino de Jesus. Com especial
fervor serão, sem dúvida, celebradas estas solenes manifestações de alegria
cristã e de cristã piedade – em união de caridade e em comunhão de orações com todos os demais
fiéis naquela nação em que por desígnio de Deus, nasceu a santa Virgem que
foi promotora e propagadora infatigável desta devoção.
76. Entrementes, animado de doce esperança, e já
pressagiando os frutos espirituais que da devoção ao sagrado coração de
Jesus hão de transbordar copiosamente na Igreja se esta devoção, conforme
explicamos, for entendida retamente e praticada com fervor, a Deus suplicamos
que, com o poderoso auxílio da sua graça, queira atender estes nossos vivos
desejos, e fazer que, com a ajuda divina, as celebrações deste ano aumentem
cada vez mais a devoção dos féis ao sagrado coração de Jesus, e assim se
estenda mais por todo o mundo o seu império e reino suave; esse "reino de
verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e
de paz".
77. Como penhor destes dons celestiais, concedemo-vos de
todo
o coração a bênção apostólica, tanto a vós pessoalmente, veneráveis
irmãos, como ao clero e a todos os fiéis confiados à vossa solicitude
pastoral, e em especial àqueles que de propósito fomentam e promovem a
devoção ao sagrado coração de Jesus.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 15 de maio de 1956,
ano XVIII do nosso pontificado.
PIO PP. XII.