Sermão de
São Leão Magno
sobre a Paixão do Senhor
(Sermão LVII)
O sermão que hoje
publicamos como precioso alimento para estes dias sacratíssimos da Quaresma em
que, na alegria do Espírito Santo esperamos a Páscoa do Senhor, é um dos
dezenove sermões do santo Papa que estão colecionados nas edições impressas como
“Sermões sobre a Paixão”. Pelas suas primeiras palavras, vê-se que é precedido de um outro. Esta
circunstância não prejudica porém a sua unidade, pois forma por si só um todo
independente; foi pronunciado numa quarta-feira da Semana Santa e o sermão
anterior a que alude, no domingo precedente.
Mesmo entre os sermões de
S. Leão este se faz notar pela sua extraordinária beleza, pela segurança
magistral do movimento oratório; contém por assim dizer todos os pontos de
história e doutrina que o santo Pastor costumava abordar nas homilias similares
e não se estende por mais de quinze minutos.
De início, é quase um
“sermão de lágrimas”: é a Paciência de Cristo, a crueldade e cegueira dos
Judeus, a cumplicidade de Pilatos, a iniqüidade do processo que condenou Jesus e
tudo isso culminando com a crucificação e morte de Cristo (I-V). Mas neste
momento, a narração cede o passo à exortação: o pensamento se eleva gradativa e
rapidamente e o tema da gloria da Paixão se desenvolve em toda a sua plenitude
(VI-VII). A conclusão é uma exortação à vida cristã: a Paixão do Senhor destruiu
a morte e a nossa vida, a nossa moral é o exercício do mistério da “nova
criatura”: “como as coisas antigas passaram e tudo se fez novo, ninguém
permaneça na caducidade da vida carnal...” (VIII).
A glória da Paixão... a
glória da Morte do Senhor... “uma força da fraqueza, uma glória do opróbio...”.
Invariavelmente o santo Padre desenvolve este tema. “A glória da Paixão do
Senhor, sobre a qual vos prometemos falar ainda hoje, Diletíssimos, é
principalmente admirável pelo mistério de humildade que contém”: são as
primeiras palavras de um outro sermão seu. Invariavelmente ele nos exorta à
alegria e nos proíbe de chorar ao considerarmos o espetáculo patético do Calvário; tal como hoje a Liturgia da
Sexta-Feira Santa nos fala do “gáudio que veio para todo o mundo” através da
Cruz do Senhor.
Piedoso exagero oratório?
Gosto condenável do paradoxo? É quase um escândalo (o escândalo da Cruz!) que
possamos indagar, ainda que em interrogação retórica, a respeito daquilo que o
instinto cristão mais elementar já exprimia ao adornar a Cruz de pedrarias e
assim representar aos olhos da carne o que a fé via tão nitidamente: a glória da
Paixão do Senhor. E no entanto indaguemo-lo agora: será a Paixão gloriosa, será
gloriosa a Morte do Senhor, será a Sexta-Feira Santa um dia de triunfo e de
glória, estará certo o Cânon da nossa Liturgia ocidental ao dizer que
comemoramos “a tão bem-aventurada Paixão” de Cristo?
Certo, seria já um começo de
resposta, dizer que a Paixão e a Morte são gloriosas quando consideradas como
passagem para a glória manifesta da Ressurreição. “Humilitas, claritatis est
meritum; claritas, humilitatis est praemium”.
Mas então, a humildade desses intermediários não seria gloriosa em si mesma, mas
apenas “respective”, por uma consideração de conjunto da obra redentora, em que
cada parcela recebe os atributos do resultado definitivo. Caminho para o
triunfo, sim; causa e mérito da glorificação do corpo ressurrecto de Cristo, se quiserem; mas gloriosa em si mesmas, triunfais segundo a sua própria
consideração... isso é mais difícil de admitir!
E no entanto, é bem neste
sentido que S. Leão interpreta as palavras de Cristo naquele momento em que alguns gentios
prosélitas do judaísmo procuravam vê-lO, apelando para o Apóstolo Felipe. Jesus
disse então a André e Felipe: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do
Homem. Em verdade, em verdade eu vos digo: se o grão de trigo que cai na terra
não morre, permanece sozinho; mas se morre, dá muitos frutos. Quem ama a sua
vida, perde-a, e quem lhe tem ódio neste mundo, conserva-a para a vida eterna,
etc.” (Jo. C. XII).
Não resistimos ao prazer
de citar aqui alguns trechos do comentário que a esta passagem faz o Doutor
Comum da Igreja: eles constituem ao mesmo tempo o melhor comentário que se
poderia fazer da própria doutrina de S. João. Depois de transcrever os
versículos citados, escreve Santo Tomás:
Aqui é prenunciada a
Paixão de Cristo. Primeiro, o Cristo prenuncia estar iminente o tempo da sua
Paixão; em seguida alude à necessidade da Paixão, pelas palavras: “Em verdade,
em verdade eu vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, etc”, e
finalmente, induz a necessidade do sofrimento dos outros, pelas palavras: “Quem
ama a sua vida, perde-a”. Diz Ele pois: “Chegou a hora de ser glorificado o
Filho do Homem”. Neste ponto, deve-se notar que o Senhor, vendo aqueles gentios
se dirigirem para a Fé e percebendo neles principiar de algum modo a conversão
das gentes, prenunciou estar iminente o tempo da sua Paixão, tomando este fato
como um indício, assim como alguém que vê o trigal branquejar diz: — Chegou a
hora de pôr a foice à messe (cf. Jo. IV, 35: “Considerai os campos: já estão
brancos para a colheita”). Assim pois fala o Senhor: — Visto que os gentios Me
querem ver, “chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem”. E de fato Ele
foi triplamente glorificado. Primeiro, na sua Paixão, como se depreende de Hebr.,
V, 5: “Não foi o Cristo que se glorificou a si mesmo, fazendo-se Sumo Sacerdote
(a saber, na ara da Cruz), mas sim Aquele que lhe dissera: — Tu és meu Filho, eu
hoje Te gerei”. É segundo aquele indício que Ele diz: “Chegou a hora de ser
glorificado o Filho do Homem”, isto é, de sofrer a Paixão. Antes da Paixão, com
efeito, os gentios não se converteriam para Ele. Ora, na sua Paixão Ele foi
glorificado não só quanto a sinais visíveis, como no escurecimento do sol, na
cisão do véu do Templo, etc., como também
quanto a
sinais invisíveis, como no triunfo que obteve publicamente sobre os príncipes
infernais, conforme Coloss., c. II. Mais acima (Jo. II, 4), Ele dissera: “Ainda
não chegou a minha hora” (n.t.: nas Bodas de Caná): é que ainda não estava
preparada, como agora, a fidelidade dos Gentes.
Em seguida, Ele foi
glorificado na Ressurreição e Ascensão. (...) Finalmente, foi glorificado pela
conversão das Gentes (...).
Assim se exprime Sto.
Tomás na sua “Expositio in Ev. B. Joannis”, c. XII, Lição IV. Vemos aí, no
cristal transparente do seu pensamento, o fundamento último da “Glória Passionis”:
a Paixão do Senhor é gloriosa porque é o exercício, a consumação do seu
Sacerdócio, “pelo qual estava reconciliando o mundo com Deus”. Esta glória é
dada pelo Pai e se manifesta em dois sinais patentes: um para nós, os milagres
cósmicos que acompanharam a morte de Cristo na cruz, outro para o mundo dos
espíritos, a derrota das Potências invisíveis que tinham poder sobre o homem
pecador e mortal; um e outro, objetos certíssimos da nossa fé. A própria Paixão
e a própria Morte, como Obra redentora do Cristo, é que brilham e refulgem com
glória divina e invisível.
Não se trata somente da
glória inamissível da alma humana de Cristo, pela sua união hipostática ao
Verbo, glória que só não refletia sobre o corpo por um milagre constante
e que uma vez os Apóstolos Pedro, Tiago e João puderam ver por um momento no
Monte Tabor, quando o Senhor se transfigurou diante deles;
não se trata também da glória essencial que o Cristo possuía como Filho
Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade
“pois o Filho não é senão um como resplendor e glória do Pai”,
mas aqui se trata da sua glória de Sumo Sacerdote, no exercício da sua Liturgia,
pela qual reintroduzia toda a humanidade na amizade e paz de Deus.
É a glória, grande
mistério do “gloriosíssimo Vencedor do Diabo e debelador potentíssimo das forças
inimigas, resplandecente de beleza, carregando o troféu do seu triunfo”;
glória que os judeus não podiam ver, mas que toda a Igreja universal iria
confessar dentro de pouco tempo. Glória que a nossa Mãe Maria Santíssima
contemplava ao pé da Cruz e que também foi vista pelo Centurião e pelo Bom
Ladrão; e por este, filho de Abraão, ainda antes da realização dos milagres
tremendos daquele dia, como para que se verificasse mais uma vez que “os
milagres são dados aos infiéis”,
representados ali pelo chefe da corte, que exclamou: — “Verdadeiramente, este
era o Filho de Deus!”.
Eis a glória sacerdotal do Cristo, que celebramos cada vez que, reunidos na
assembléia litúrgica, “anunciamos a sua morte, até que Ele venha”.
Mas justamente por
pertencer ao Cristo como Sacerdote, essa glória transborda d’Ele para toda a
humanidade: “É com efeito em participação dos seus sofrimentos que estão, não só
a gloriosa força dos mártires como também, pela própria regeneração (batismo); a
fé de todos os renascidos. Pois quando se renuncia ao Demônio e se crê em Deus,
quando se passa da velha à nova vida, quando se depõe a imagem do homem
terrestre e se recebe a forma do homem celeste, aparece sempre um certo aspecto
de morte e também uma certa semelhança da ressurreição; de modo que, recebido
pelo Cristo e ao Cristo recebendo, o homem não é o mesmo antes e depois do
batismo, mas o corpo do re-generado se faz carne do crucificado”.
Assim é que compreendemos
a consagração do sofrimento e da morte cristã: assim como em todos os tempos, só
a fé em Cristo pode salvar, também em qualquer situação, o sofrimento só tem
valor e significação para a vida eterna se for sofrimento de um membro de
Cristo: neste caso será glória e motivo de glória. “Nos autem gloriari oportet
in cruce Domini nostri Jesu Christi”.
Nao se trata para nós de desprezar os sofrimentos e só pensar na glória: isso
seria uma dissociação diametralmente oposto ao espírito cristão; muito menos de
nos comprazermos nos sofrimentos considerados isoladamente da sua significação:
trata-se porém de afirmar “uma glória do opróbio e uma força da fraqueza”,
posição infinitamente difícil, já de ser compreendida em abstrato, já de ser
realizada em concreto.
Posição impossível mesmo
de ser assumida pelas nossas simples forças humanas de inteligência e vontade,
se não tivéssemos recebido no batismo, por obra do Espírito Santo, a graça de
imitar o Cristo. Graça que a cada dia podemos renovar, “pois a participação do
corpo e do sangue de Cristo não se realiza outra coisa senão a nossa
transformação naquilo mesmo que recebemos, e a possessão em tudo, pelo espírito
e pela carne, daquele no qual estamos com-mortos, com-sepultos,
com-ressuscitados.
TRADUÇÃO DO SERMÃO
Percorridos, Diletíssimos,
no sermão anterior, os fatos que precederam a prisão do Senhor, resta-nos agora,
com o auxílio da graça de Deus, dissertar, como prometemos, sobre o próprio
desenrolar da Paixão. Pois tendo o Senhor tornado bem claro, pelas palavras da
sua sagrada oração,
que existiam n’Ele de modo sumamente verdadeiro e pleno as naturezas humana e
divina, mostrando assim de onde Lhe vinha o não querer sofrer e de onde o
querer; tendo repelido de si o temor da fraqueza e confirmado a grandeza da
força, retomou o sentimento da sua eterna disposição e, pelo ministério dos judeus, lançou ao feroz Diabo a forma do servo que nada possuia de pecado, para que a causa de todos
fosse advogada por aquele único no qual existia, sem a culpa, a natureza de
todos. Atiraram-se pois sobre a luz verdadeira os filhos das trevas e, embora
usando tochas e lanternas, não escaparam à noite da sua infidelidade, porque não
reconheceram o Autor da luz. Apoderam-se d’Aquele que estava preparado para ser
preso e arrastam Aquele que queria ser arrastado e que, se quisesse resistir,
nada poderiam as ímpias mãos para injuria-lO: mas a redenção do mundo seria
retardada, e, sem sofrer, a ninguém salvaria Aquele que devia morrer pela
salvação de todos.
— II —
Deixando portanto que Lhe
fizessem tudo quanto ousavam, sob a instigação dos sacerdotes, o furor popular,
é conduzido a Anás, sogro de Caifás e em seguida, por ordem de Anás, (é levado)
a Caifás. E depois das loucas acusações dos caluniadores, depois das imaginárias
falsidades das testemunhas subordinadas, é transferido, por delegação dos
pontífices, ao julgamento de Pilatos. Aqueles, com desprezo do direito divino,
bradando que “não tinham como rei senão a Cesar”, (Jo. XIX, 15) como pessoas
dedicadas às leis romanas, reservaram todo o julgamento ao poder do Governador,
antes ansiando pelo executor da violência que pelo arbítrio da causa. Ofereciam
Jesus amarrado por fortes laços, batido por numerosos tapas e socos, coberto de
escarros, já condenado previamente pelos clamores, para que, no meio de tantos
pre-julgamentos, Pilatos nao ousasse absolver aquele que todos queriam condenar.
O próprio processo mostra que nem ele encontrou culpa no acusado, nem tinha
firmeza na sua opinião. O juiz condena a quem declara inocente, entregando o
sangue do Justo ao povo iníquo; sangue do qual, pela sua própria inteligência e
pelo sonho de sua mulher,
sabia dever abster-se. O lavar das mãos não purifica o espírito contaminado e
nem é expiado com a aspersão dos dedos o crime cometido com ímpia intenção
servil. Excede á culpa de Pilatos o crime dos judeus que, aterrorizando-o com o
nome de Cesar e excitando-o com palavras invejosas, provocaram-no à realização
da sua maldade. Mas também não foge à culpa aquele que, superado pelas
desordens, abandonou o próprio julgamento e participou no crime alheio.
— III —
Pilatos, Diletíssimos,
vencido pela loucura do povo implacável, permitiu que Jesus fosse insultado por
muitos ludíbrios e vexado por desmedidas injúrias; à consideração dos
perseguidores mostrou-O espancado de açoites, coroado de espinhos e revestido
com o manto de irrisória veste. Pensou que sem dúvida isso abrandaria os ânimos
dos inimigos; que, saturados os ódios invejosos, já não mais julgassem dever ser
perseguido Aquele que viam afligdo de tantas maneiras. Mas acendendo-se a ira
dos que clamavam que soltasse Barrabás por indulgência e que Jesus sofresse a
pena da Cruz; como se fosse dito em frêmito uníssono pelas turbas: “Sobre nós o
seu sangue e sobre os nossos filhos”,
obtiveram os inimigos para a sua própria condenação aquilo que exigiam
pertinazmente. “Os seus dentes”, como testemunhou o Profeta, “eram armas e setas
e a sua língua um gáudio acerrado”.
Inútil lhes era conter-se de crucificar com as próprias mãos o Senhor de
majestade: atiravam-lhe os dardos letais dos gritos e as flechas envenenadas das
palavras. A vós, a vós, ó pérfidos judeus, ó sacrílegos Príncipes do povo, cabe
todo o peso deste crime; e conquanto a ferocidade do atentado envolva também o
Governador e os soldados, todo o conjunto do acontecimento vos acusa. E tudo
aquilo que, no suplício do Cristo, ou foi erro de julgamento de Pilatos, ou
complacência da corte, mais ainda vos torna merecedores do ódio do gênero
humano, pois pela insistência do vosso furor, nem foi permitido que ficassem
inocentes aqueles que não se agradavam da vossa iniqüidade.
— IV —
Como a cegueira dos
infiéis judeus assim negasse ser seu rei o Senhor de todas as coisas, foi o
Senhor Jesus entregue à vontade dos malfeitores e, para irrisão da régia
dignidade, foi-lhe ordenado ser o portador de sua Cruz (para que se cumprisse o
que previra o Profeta Isaías dizendo: “Eis que nasceu um menino e nos foi dado
um filho que tem o império sobre os ombros”.
Portanto, quando o Senhor carregava o lenho da Cruz que converteria para Si em
cetro de poder, diante dos olhos dos ímpios era isso uma grande irrisão, mas aos
Fiéis se manifestava um grande mistério, pois o gloriosíssimo vencedor do Diabo
e debelador potentíssimo das forças inimigas, resplandecente de beleza,
carregava o troféu do seu triunfo; e trazia sobre os ombros com paciência
inalterável o estandarte da salvação para a adoração de todos os reinos; como
para fortalecer então, pela imagem da sua própria ação, todos os seus
imitadores, dizendo: “Quem não toma a sua Cruz e segue-Me, não é digno de Mim”.
— V —
Encaminhando-se então as
turbas com Jesus para o lugar da execução, apareceu Simão, um certo Cireneu, ao
qual foi transferido o lenho da Cruz do suplício, para que também por um tal
fato prefigurada a fé dos Gentios, para quem a Cruz de Cristo não seria vergonha
mas glória. Não foi coisa fortuita, mas figurada e mística que, assanhando-se os
judeus contra o Cristo, aparecesse um estrangeiro para compadecer-se dele,
segundo a palavra do Apóstolo: “Se com-padecemos, também co-reinaremos”
para que ao opróbio sacratíssimo do Salvador não fosse submetido algum hebreu ou
israelita mas um estrangeiro. Com efeito, por essa transferência também passava
da circuncisão para o prepúcio, dos filhos carnais para os espirituais a
propriação do Cordeiro Imaculado e a plenitude de todos os sacramentos. Pois se
“o Cristo foi imolado”, como diz o Apóstolo, “como nossa Páscoa”
que, oferecendo-Se ao Pai como novo e verdadeiro Sacrifício de reconciliação,
não foi crucificado no Templo, cuja veneração estava acabada, nem dentro dos
muros da cidade, que devia ser destruída em castigo do seu crime, mas fora das
portas e do acampamento,
isso foi para que, tendo cessado o mistério das antigas vítimas, uma nova hóstia
fosse colocada sore um novo altar e a Cruz do Cristo não fosse a ara do Templo,
mas a do mundo inteiro.
— VI —
Considerando o Cristo
exaltado pela Cruz, não ocorra à nossa mente, Diletíssimos, só aquela visão que
esteve nos olhos dos ímpios, a quem foi dito por Moisés: “E tua vida estará
pendente ante teus olhos, e temerás dia e noite, e não crerás na tua vida”.
Vendo o Senhor crucificado, estes com efeito em nada puderam pensar senão no seu
próprio crime, pois não possuíam o temor pelo qual a verdadeira fé se justifica,
mas aquele pelo qual a consciência iníqua é torturada. A nossa inteligência
porém, que é iluminada pelo Espírito da verdade, recebe com puro e livre coração
a glória da Cruz que resplandece no Céu e na terra. Com penetração profunda veja
a realização daquela palavras do Senhor, quando falou sobre o transe da sua
Paixão: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem”; e em seguida:
“Agora a minha alma está pertubada, e que direi? Pai, livra-Me desta hora. Mas
foi para isto que Eu cheguei até esta hora. Pai, glorifica teu Filho”. E como
viesse do céu a voz do Pai, dizendo: “Já o glorifiquei, e ainda o glorificarei”,
Jesus, dirigindo-se aos circunstantes, disse:”Não por minha causa essa voz se
fez ouvir, mas por vossa causa. Agora é o julgamento do mundo, agora o Príncipe
deste mundo será expulso. E quando Eu for elevado da terra, tudo atrairei a
Mim”.
— VII —
Ó admirável poder da Cruz!
Ó inefável glória da Paixão! Nela o tribunal do Senhor, o julgamento do mundo, o
poder do Crucificado. De fato atraíste tudo a Vós, Senhor, e tendo estendido os
braços um dia inteiro para o povo infiél e negador que não acreditava em Vós e
Vos contradizia, o mundo inteiro recebeu o senso para confessar a Vossa
majestade.
Tudo atraíste a Vós, Senhor, quando, em execração da ignomínia dos judeus, todos
os elementos proferiram a mesma sentença; quando, apagadas as luzes do céu e
transformado o dia em noite, agitando-se a terra com movimentos insólitos, toda
criatura se recusou ao uso dos ímpios. Tudo atraíste a Vós, Senhor, pois,
tendo-se rasgado o véu do Templo, os Santos dos Santos se retiraram dos indignos
Pontífices, para que a figura se transformasse na verdade, a profecia, na
manifestação, e a Lei, no Evangelho. Tudo atraíste a Vós, Senhor, para que
aquilo que era celebrado num único templo da Judéia sob simbolismos obscuros,
fosse celebrado em toda parte, pela devoção de todas as nações, num Sacramento
pleno e sem véus. Agora, com efeito, é mais gloriosa a ordem dos Levitas, mais
ampla a dignidade dos Anciãos, mais sagrada as bençãos, a causa de todas as
graças; por ela é dada aos crentes uma força tirada da fraqueza, uma glória do
opróbio, uma vida da morte. Também agora, tendo cessado toda espécie de
sacrifícios carnais, a oblação única do Vosso Corpo e Sangue substitui toda a
verdade das vítimas: pois Vós sois o verdadeiro “Cordeiro de Deus, Vós que
tirais os pecados do mundo”.
E assim em Vós perfazei todos os mistérios, a fim de que, assim como um só é o
sacrifício em lugar de toda vítima, seja também feito com toda nação um só
reino.
— VIII —
Confessemos portanto,
Diletíssimos, o que com gloriosa voz confessou o Apóstolo São Paulo,
bem-aventurado Mestre das Gentes, dizendo: “Fiel sentença e digna de toda
aceitação é que o Cristo Jesus veio a este mundo salvar os pecadores.
É mais maravilhosa aqui a misericórdia de Deus para conosco, porque o Cristo não
morreu pelos judeus nem pelos santos, mas pelos iníquos e ímpios; e como a
natureza divina não podia receber o aguilhão da morte, nascendo de nós Ele
assumiu aquilo que por nõs podia oferecer (n.t.: uma natureza humana). Já de há
muito, com efeito, o poder da sua morte ameaçava a nossa morte, como Ele disse
pelo Profeta Oséas: ‘Ó morte, eu serei a tua morte; ó inferno, eu serei a tua
perda!’. De fato Ele submeteu-se às leis do inferno, morrendo, mas destruiu-as,
ressurgindo; e assim destruiu a perpetuidade da morte, fazendo-a de eterna,
temporária. “Assim pois, como todos morrem em Adão, também todos serão
vivificados no Cristo”. Faça-se portanto, Diletíssimos, o que diz o Apóstolo São
Paulo: “Que os que vivem já não vivam para si, mas para Aquele que morreu e
ressuscitou por todos”, e como as coisas antigas passaram e tudo se fez novo,
ninguém permanecerá na caducidade da vida carnal, mas todos, progredindo de dia
para dia, renovemo-nos pelo aumento de piedade. Pois por mais que alguém esteja
justificado, tem contudo, enquanto está nesta vida, por onde seja mais provado e
melhor. Pois quem não progride, regride; e quem nada adquire, não deixa de
perder alguma coisa. Compete-nos portanto correr pelos passos da Fé, pelas obras
de misericórdia, pelo amor da justiça, a fim de que, celebrando espiritualmente
o dia da nossa Redenção, “não com o fermento da antiga malícia e perversidade,
mas com os ázimos da sinceridade e da verdade”, mereçamos ser participantes da
Ressurreição do Cristo, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos
séculos dos séculos. Amém.
Revista “A Ordem”, Abril
de 1943.
(São Leão Magno foi papa entre 29 de setembro de 440 e sua morte em novembro de 461 )