Fontes Franciscanas
III
Tradução: Frei Henrique Pinto Rema, OFM
SANTO ANTÔNIO DE LISBOA
Volume I
Sermão do Quinto Domingo da Quaresma
ou do Domingo da Paixão
SUMÁRIO
Evangelho no quinto domingo da Quaresma: Qual de vós me arguira de pecado? Divide-se em sete cláusulas.
Em primeiro lugar, um sermão aos pregadores ou prelados: Armai-vos de fortaleza, filhos de Benjamim.
1 - Um sermão acerca da Paixão de Cristo: Cristo, vindo como Pontíficie.
2 - Um sermão aqueles que ouvem e contra aqueles que não querem ouvir a palavra do Senhor: Levanta-te e desce; e: A quem falarei? e: E eis que eu farei cair.
3 - Um sermão sobre a guarda de Cristo a nosso respeito e sobre a sua paciência no meio das blasfêmias dos judeus: Que vês, tu, Jeremias? e: Ai de mim, minha mãe.
Um sermão sobre a glória e a ruína do primeiro pai: Uma oliveira fecunda.
4 - Um sermão sobre a mortificação do justo: foram dias de vida.
5- Um sermão acerca de Cristo glorificado: É o Pai quem me glorifica
6 - Um sermão para o Natal do Senhor: Naqueie dia sairá uma fonte da casa do Senhor.
Um sermão acerca dos quatro dotes do corpo glorioso: Ao terceiro dia ressuscitar-nos-á e acerca da propriedade do abutre e do grou.
7 - Um sermão contra os ingratos: Porventura lenho eu sido um deserto para Israel?
Exórdio. Sermão aos pregadores ou aos prelados
1. Qual de vós me arguira de pecado? Se vos digo a verdade, porque não me credes?
Aos pregadores fala Jeremias:
Armai-vos de fortaleza, filhos de Benjamim, no meio de Jerusalém e
fazei soar a trombeta em Técua e levantai o estandarte em Betacarém.
Benjamim interpreta-se filho da direita; Jerusalém, visão da paz; Técua, trombeta; Betacarém, casa estéril. Armai-vos, portanto, de fortaleza e não temais, ó pregadores, filhos de Benjamim, isto é, da direita, ou seja, da vida eterna, da qual se escreve nas Parábolas:Na
sua direita está uma larga vida. Armai-vos de fortaleza no meio de
Jerusalém. Jerusalém é a Igreja militante, na qual há visão de paz, ou
seja, a reconciliação do pecador. E diz-se bem: no
meio. O meio da Igreja é a caridade, que se estende ao amigo e ao
inimigo. Para conseguir este meio deve o pregador armar de fortaleza os
fiéis da Igreja. E fazei soar a trombeta da pregação em Técua, isto é,
entre aqueles que, quando praticam alguma obra boa, como os hipócritas,
tocam a trombeta diante de si – comprazem-se, como se diz no livro da Sabedoria, em ter debaixo de si muitas nações –,para que, ao ouvir a trombeta, como diz Jeremias,
exclamem: Ai de nós, Senhor, porque pecamos. E em Betacarém, casa
estéril daqueles que são áridos da umidade da graça, estéreis de boas
obras, cuja terra, o entendimento, não recebe gota de sangue do corpo de
Cristo, levantai o estandarte da cruz, pregai a
Paixão do Filho de Deus, porque chegou o tempo da Paixão, anunciai aos
mortos que ressurjam na morte de Jesus Cristo, que afirma às turbas dos
Judeus no Evangelho de hoje: Qual de vis me argüirá de pecado?
2.
Observa que neste Evangelho há sete pontos: Primeiro, a inocência de
Jesus Cristo, ao dizer: Qual de vós me argüirá? Segundo, a atenta
audição da sua palavra, ao juntar: Quem é de Deus ouve as palavras de
Deusetc. Terceiro, a blasfêmia dos Judeus: Porventura não dizemos nós
bem que tu és Samaritano e tens demônio?Quarto, a glória da vida eterna
ao cumpridor da sua palavra: Em verdade, em verdade vos digo, se alguém
guardar a minha palavra, não experimentará a morte eternamente. Quinto, a
glorificação do Pai: É meu Pai quem me glorifica. Sexto, a alegria de
Abraão: Abraão, vosso Pai, exultou ao ver o meu dia. Sétimo, a
voluntária lapidação dos Judeus e a ocultação de Jesus Cristo: Pegaram
em pedras para lhas atirarem etc.
Nota ainda que neste domingo e no seguinte se lê Jeremias e se cantam os responsórios: Estes são os dias, juntamente com os restantes, em que se não diz o Glória ao Pai.
I – A inocência de Jesus Cristo
3. Assim fale o cordeiro inocente, que tirou o pecado do mundo, que não pecou nem se encontrou engano na sua boca, que tomou sobre si os pecados de muitos, como diz Isaías, e intercedeu pelos pecadores.Qual de vós me arguira, isto é, acusará ou convencerá,
de pecado? Certo, ninguém. Como poderia alguém arguir de pecado quem
viera perdoar os pecados e dar a vida eterna? Por isso, o Apóstolo
refere na Epístola de hoje aos Hebreus: Cristo
intervém como pontífice dos bens futuros etc. Intervir significa ajudar
ou obedecer. Cristo interveio, isto é, ajudou-nos. Donde o Profeta: Ajudou o pobre a sair da sua miséria. O gênero humano era pobre, porque espoliado dos dons gratuitos, vulnerado nos naturais;
estava sem o recurso e sem o auxílio de ninguém. Veio Cristo:
assistiu-lhe, ajudou-o, quando lhe perdoou os pecados. Cristo também
obedeceu a Deus Pai até à morte, e morte de cruz.
Nela ofereceu a Deus Pai, em reconciliação do gênero humano, não o
sangue de bodes ou bezerros, mas o próprio sangue, para purificar a
nossa consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo. Chama-se-lhe Pontífice dos bens futuros. Pontífice é o que estabelece uma ponte, para dar passagem aos viandantes.
Havia duas margens, a da mortalidade e a da imortalidade, entre as
quais deslizava um rio intransponível, o rio das nossas iniqüidades e
misérias. Delas escreve Isaías: As vossas
iniquidades abriram um abismo entre vós e o vosso Deus, e os vossos
pecados esconderam de vós a sua face, para não vos ouvir.
Veio,
portanto, Cristo, como Pontífice; fez-se ponte que vai da margem da
nossa mortalidade à margem da sua imortalidade. Por ele, como prancha de
madeira lançada entre as duas margens, passaríamos a possuir os bens
futuros. Esta a razão por que se diz Pontífice dos bens futuros, não dos
presentes, que não prometeu aos seus amigos, antes diz: Haveis de ter
aflições no mundo. Cristo, portanto, intervém no
perdão dos nossos pecados, como Pontífice dos bens futuros, para nos dar
os bens eternos. Quem, portanto, o pode argüir de pecado? Que é o
pecado senão a transgressão da Leo divina e a desobediência aos
mandamentos celestes? Quem, pois, o pode argüir de pecado, cuja vontade esteve na lei do Senhor,
que obedeceu, não só ao Pai celeste, mas ainda à Mãe pobrezinha? Qual
de vós, portanto, me argüirá de pecado? Se eu vos digo a verdade, porque
não me credes? Não criam na verdade, porque eram filhos do diabo, que é mentiroso e pai da mesma mentira, por ele inventada.
II – A audição da palavra de Cristo
4. Segue o segundo. Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus; vós não as ouvis porque não sois de Deus. Deus, em hebraico, que dizer temor. É de Deus aquele que teme a Deus; a quem teme a Deus, ouve as suas palavras. Por isso, diz o Senhor por Jeremias:
Levanta-te e desce à casa do oleiro, e ao ouvirás as minhas palavras.
Levanta-te aquele que, tomado pelo temor, se arrepende de ter praticado o
mal; e desce à casa do oleiro ao reconhecer-se lodo, temendo que o
Senhor o quebre como vaso de barro; e desta forma ouve aí as palavras do Senhor, porque é de Deus, porque teme a Deus. Diz S. Jerônimo:
É grande sinal de predestinação ouvir de bom grado as palavra de Deus e
ouvir notícias da pátria celeste, como alguém que gosta de ouvir
notícias da pátria terrena. E o contrário é sinal de obstinação. Por
isso, ajunta-se: Vós não ouvis porque não sois de Deus, como se
dissesse: Não ouvis as suas palavras porque não o temeis. Daí a fala de
Jeremias: A quem falarei eu? A quem conjurarei eu
que me ouça? Eis que os seus ouvidos estão incircuncidados e não podem
ouvir; eis que a palavra do Senhor se tornou para eles motivo de
opróbrio, e não a receberão. E noutra parte refere:
Eis o que diz o Senhor: Farei apodrecer a soberba de Judá, isto é, dos
clérigos, e o grande orgulho de Jerusalém, isto é, dos religiosos. Este
povo perversíssimo, a saber, o povo dos leigos, não quer ouvir as minhas
palavras e anda na maldade do seu coração. Acerca destes escreve ainda
noutro sítio: Engordaram e engrossaram, e
transgrediram pervesissimanente os meus preceitos. Não defenderam a
causa da viúva. Porventura não hei-de eu punir estes excessos, diz o
Senhor? Ou a minha alma não se há-de vingar duma tal gente? E noutra
passagem: Eis que eu farei cair calamidades sobre
este ovo, fruto dos seus desígnios, porque não ouviram as minhas
palavras e rejeitaram a minha lei. Para que me trazeis vós incenso de
Sabá e cana de suave cheiro de terra longínqua? Os vossos holocaustos
não me são agradáveis, nem as vossas vítimas me agradaram, diz o Senhor.
Sabá interpreta-se rede ou cativa. O incenso designa a oração;
a cana, a confissão do crime ou do louvor. Quem não ouve as palavras de
Deus e não conhece a sua lei, que é a caridade, porque o amor é a
plenitude da lei, queima baldadamente o incenso da
oração. O incenso vem de Sabá, vaidade do mundo. A vaidade retém o homem
enredado e cativo. Traz ao Senhor ainda a cana da confissão, que é de
suave cheiro, se for feita em caridade; trá-la de terra longínqua, isto
é, da imundície do espírito, que separa o homem de Deus. Os vossos
holocaustos, isto é, as vossas abstinências, não me são agradáveis; e as
vítimas, isto é, as vossas esmolas,não me agradaram, diz o Senhor,
porque lançastes fora a caridade. Que mais? Todas as nossas obras são
inúteis para a vida eterna se não são condimentadas com o bálsamo da
caridade.
III – A blasfêmia dos Judeus contra Cristo
5.
Segue o terceiro: Responderam os judeus e disseram-lhe: Não dizemos nós
com razão que tu és um samaritano e que tens demônio? Jesus respondeu:
Eu não tenho demônio, mas honro o meu Pai, e vós a mim desonrastes-me. E
eu não busco a minha glória; há quem a busque e quem fará justiça. Os samaritanos, transferidos pelos Assírios, adotaram em parte o rito dos Israelitas e em parte o rito dos gentios. Os judeus não mantinham relações com eles,
por os reputarem impuros, por isso, a quem queriam insultar chamavam
samaritano. Samaritanos interpretam-se guardas, por terem sido colocados
pelos babilônios na guarda dos Judeus. Dizem portanto: Não dizemos nós com razão que tu és um samaritano? Isto aceita o Senhor sem o negar, porque é guarda. Não dorme nem dormita quem guarda a Israel e vigia sobre o seu rebanho. Daí a afirmação do Senhor a Jeremias: Que vês tu, Jeremias? E ele disse: uma vara vigilante, ou segundo outra tradução, uma vara de nogueira ou de amendoeira,
estou eu a ver. E disse-me o Senhor: Viste bem, e eu vigiarei sobre a
minha palavra para a realizar.A vara, assim chamada de virtude ou
verdura ou porque com ela os homens governam, significa Jesus Cristo, virtude de Deus; plantada junto do curso das águas, isto é, junto da abundância das graças, permanece verde, ou seja, imune de todo o pecado. Ele de si próprio diz em S. Lucas: Se fazem isto no lenho verde, que acontecerá no seco? A ele disse o Pai: Governa-os com vara de ferro, isto é, com justiça inflexível.
Esta vara vigiou sobre a sua palavra para a realizar, porque mostrou
com fatos o que pregou de palavra. Vigia sobre a sua palavra quem
pratica o que prega por palavra.
6.
Ou então, Cristo chama-se vara vigilante, porque assim como o ladrão,
desperto durante a noite, rouba objetos da casa dos qie dormem com uma
vara munida de gancho, também Cristo, com a vara da sua humanidade e o
gancho da santa Cruz roubou as almas ao diabo. Por isso, disse: Quando for exaltado da terra, tudo atrairei a mim, com o gancho da santa Cruz. De fato, o dia do Senhor virá como o ladrão durante a noite. E no Apocalipse diz: Se não vigiares, virei a ti como o ladrão.
Igualmente
se chama Cisto vara de nogueira ou de amendoeira. Nota que na nogueira
ou na amendoeira a amêndoa é doce, o caroço rijo, a casca amarga.
A amêndoa doce designa a divindade de Cristo; o caroço rijo, a alma; a
casca amarga, a carne, que suportou a amargura da Paixão.
Vigiou sobre a palavra do Pai, que é chamada sua, porque faz um só com o
Pai, para a realizar. Daí o dizer: Como o Pai me mandou, assim o faço.
portanto, não tenho demônio, porque cumpro as ordens do Pai. Por
conseguinte, blasfemam em verdade os falsos judeus: Tens demônio. Desta
blasfêmia contra a pessoa de Cristo refere Jeremias:
Ai de mim, minha mãe! Porque me geraste homem de rixa e de discórdia em
toda a terra? Nunca lhes dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu
ninguém; todos me amaldiçoam, diz o Senhor.
Nota
que há um duplo ai: o da culpa e o da pena. Cristo teve o ai da pena,
mas não o da culpa. Ai, portanto, de mm, minha mãe! Porque me geraste
para tamanha pena homem de rixa e homem de discórdia? Rixa é o que se
comente entre muitos. Por isso, rixoso quer dizer ricto canino, porque sempre pronto a contradizer.
A discórdia quer dizer coração diverso. Discordar é possuir um coração
diverso. Assim entre os judeus havia rixa por causa das palavra de
Cristo. Com efeito, os judeus estavam sempre prontos a ladrar e a
contradizer como se foram cães. Tinham opiniões diferentes. Alguns
efetivamente diziam: é bom; outros, pelo contrário: Não é, mas seduz as
multidões. Nunca dei dinheiro a usura, nem a mim mo deu ninguém. Usurário chama-se não só o que empresta mas também o que recebe.
Cristo, portanto, não deu dinheiro a usura, porque não encontrou dentre
os judeus a quem emprestasse o dinheiro da sua doutrina. E não lhe deu
ninguém dinheiro a usura, porque não quiseram multiplicar com boas obras
a moeda da doutrina, antes todos o amaldiçoavam
dizendo:És samaritano e tens demônio. Respondeu Jesus: Eu não tenho
demônio. Refuta a calúnia, mas, paciente, não retorna a injúria. Honro o
meu Pai, dando-lhe a honra devida, atribuindo-lhe tudo, e vós desonrastes-me.Por isso, na pessoa de Cristo diz Jeremias nos Trenos: Estou feito objeto de escárnio para o meu povo ao longo de todo o dia. E noutro lugar:
Oferecerá a face a quem lhe bater, será saturado de opróbrios. Eu,
porém, não procuro a minha glória, como os homens, que às afrontas
sofridas retribuem com afrontas, mas reservo-a ao Pai. Donde ajuntar: Há
quem a procure e quem faça justiça. É o que diz em Jeremias:
Mas tu, Senhor dos exércitos, que julgas segundo a equidade e que
sondas os afetos e os corações, faz que eu veja as vinganças que deles
tomarás.
E nota que há duplo juízo: um de condenação, do qual se escreve: O Pai não julga ninguém, mas confiou todo o juízo ao Filho;
outro de separação. Dele diz o Filho no Intróito da missa de hoje:
Julga-,e, ó Deus, e separa a minha causa de uma gente não santa
etc. É ainda neste sentido que ele diz: É o Pai quem procura a minha
glória e separa a minha glória da vossa. Vós gloriais-vos segundo o
século, não eu; a minha glória é aquela que tive junto do Pai antes que o
mundo existisse, diferente do orgulho dos homens.
7. Sentido moral. Tens demônio. Demônio, do grego daimonion, quer dizer perito e conhecedor de fatos. O vocábulo grego daimon
significa muito ciente. Quando, portanto, alguém, por adulação ou
aplauso, te diz: És perito e sabes muito, diz-te: Tens demônio. E tu
imediatamente deves responder com Cristo: Eu não tenho demônio. De mim
mesmo nada sei, nada tenho de bom, mas honro o meu Pai. A ele atribuo
tudo; a ele dou graças; dele provém toda a sabedoria, toda a perícia e
ciência. Eu não busco a minha glória. Diz com S. Bernardo:
Não me toques, palavra de vanglória, pois é só devida a glória a quem
se reza: Glória ao Pai e ai Filho e ao Espírito Santo. Diz igualmente: O
anjo, no céu, não busca do anjo a glória; e o homem, na terra, deseja
ser louvado pelo homem.
IV – Glória eterna para o servidor da palavra de Cristo
8.
Segue o quarto: Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha
palavra, não verá a morte eternamente. Disseram-lhe, pois, os judeus:
Agora reconhecemos que tens demônio. Abraão morreu e os Profetas, e tu
dizes: Quem guarda a minha palavra não verá a morte eternamente.
Porventura és maior do que o nosso pai Abraão, que morreu? E os Profetas
morreram. Que pretendes tu ser? Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a
mim mesmo, não é nada a minha glória. Ámen
significa: verdadeiramente, fielmente, ou faça-se. É vocábulo hebraico
como aleluia. E assim como no céu S. João ouviu ámen e aleluia, conforme
refere no Apocalipse, assim na terra estas duas palavras foram entregues pelos Apóstolos para serem pronunciadas por todos os povos:
Em verdade, em verdade vos digo: quem guardar a minha palavra, não verá
a morte eternamente. Morte vem da mordedura do primeiro homem, porque
ao morder o pomo da árvore proibida incorreu na morte. Se tivesse
guardado a palavra do Senhor: Come de toda a árvore do paraíso, mas não
comas da árvore da ciência do bem e do mal, não
teria experimentado a morte eternamente; mas porque não a guardou,
experimentou a morte e pereceu juntamente com toda a sua posteridade.
Daí a fala de Jeremias: O Senhor pôs-te o nome de
oliveira fecunda, formosa, fértil, vistosa; à voz da sua palavra
grandíloqua, acendeu-se nela o fogo e queimaram-se os seus ramos.
A natureza humana antes do pecado foi oliveira na criação e criada no campo damasceno,
mas plantada, por assim dizer, no paraíso de delícias; fecunda nos dons
gratuitos, formosa nos naturais, fértil no gozo da eterna felicidade,
vistosa na sua pureza. Mas ai! à voz da sua palavra grandíloqua, isto é,
da sugestão diabólica a prometer grandes coisas: Sereis como deuses,
acendeu-se nela o fogo da vanglória e da avareza e desta forma foram
queimados os seus ramos, ou seja, toda a sua posteridade. Ó filho de
Adão, não imiteis os vossos pais, que não guardaram a palavra do Senhor,
e por isso pereceram, mas guardai-a: Em verdade, em verdade vos digo
que se guardardes a minha palavra, não vereis a morte eternamente. Ver,
neste lugar, é o mesmo que experimentar.
9.
Segue. Disseram, pois, os judeus: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó
desatino de espírito imbecil! Ó perfídia de gente demoníaca! Não vos
basta uma vez só blasfemar do inocente, imune de todo o pecado, de modo
tão horrível, com ultraje tão ignominioso, senão que repetis segunda
vez: Agora reconhecemos que tens demônio. Ó cegos, se conhecêsseis que
ele não tinha demônio, mas crêsseis no Senhor Filho de Deus!
Abraão morreu, não com aquela morte que o Senhor disse, mas de morte corporal, da qual se escreve no Gênesis:
Foram os dias de Abraão cento e setenta e cinco anos; e faltando-lhe as
forças, morreu numa ditosa velhice e em avançada idade e cheio de dias;
e foi unir-se ao seu povo. E Isaac e Ismael, seus filhos, sepultaram-no
na dupla caverna.
10.
Sentido moral. Abraão significa o justo, cuja vida deve constar de
cento e setenta e cinco anos. O número centenário, número perfeito,
designa toda a perfeição do justo; o septuagenário, que consta de sete e de dez, a infusão da graça septiforme e o cumprimento do decálogo; no quinário, a vida limpa dos cinco sentidos.
Portanto, a vida do justo deve ser perfeita pela infusão da graça
septiforme e pelo cumprimento do decálogo e pelo porte limpo dos cinco
sentidos; e desta maneira abandonará o amor mundano e morrerá para o
pecado, cheio, não vazio, de dias e reunido ao seu povo. Deste diz o
Senhor em Isaías: Os dias do meu povo serão como dias da árvore, isto é, de Jesus Cristo, porque assim como ele viverá eternamente, também o meu povo viverá e reinará com ele sempiternamente. Daí a palavra do Evangelho: Eu vivo, e vós vivereis.
E Isaa e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna. Isaac interpreta-se gozo, Ismael interpreta-se audição de Deus.
O gozo da esperança dos bens celestes e a audição dos divinos preceitos
sepultam o justo na dupla caverna da vida ativa e contemplativa, a fim de que, escondido da perturbação dos homens no secreto da face do Senhor, se proteja das línguas maldizentes.
Destas ainda se ajunta: Que pretendes tu ser? Segundo eles, pretendia
passar por Filho de Deus, igual a Deus, como se o não fosse. Mas não se
fazia: era-o verdadeiramente. Donde a afirmação do Apóstolo:
Não considerou ser rapina ao fazer-se igual a Deus.Por isso, não
diziam: Que és, mas: Que pretendes tu ser? Se eu me glorifico a mim
mesmo, a minha glória não é nada. Contra o que dizem: Que pretendes tu
ser?, refere a sua glória ao Pai. Dele é que tira o ser Deus.
V – Cristo a glorificar pelo Pai
11.
Segue o quinto: É o Pai quem me glorifica, aquele que vós dizeis ser o
vosso Deus; mas vós não o conhecestes; eu, porém, conheço-o; e se disser
que o não conheço, serei mentiroso como vós. Mas eu conheço-o e guardo a
sua palavra. Nota que o Pai glorificou o seu Filho no nascimento, ao fazê-lo nascer duma Virgem; no rio Jordão e num monte, quando disse: Este é o meu filho amado. Glorificou-o ainda na ressuscitação de Lázaro, na Ressurreição e na Ascensão. Por isso, disse em S. João:
Pai, glorifica o teu nome. Veio, pois, uma voz do céu, dizendo: E
glorifiquei-o, na ressurreição de Lázaro; e de novo o glorificareina
Ressurreição e na Ascensão. É, pois, o Pai quem me glorifica, o qual vós dizeis ser o vosso Deus. Aqui está abertamente um testemunho contra os hereges,
que afirmam ter sido dada a Lei a Moisés pelo deus das trevas. Mas o
Deus dos judeus, que deu a Lei a Moisés, é o Pai de Jesus Cristo;
portanto, o Pai de Jesus Cristo deu a Lei a Moisés. E vós não o conheceis espiritualmente, quando servis os bens terrenos. Eu, porém, conheço-o, porque sou um com ele. E se disser que não o conheço, quando o conheço, serei mentiroso como vós, que dizíeis conhecê-lo, quando não o conheceis.
Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra.Como Filho, exprimia a palavra
do Pai; e ele mesmo era a Palavra do Pai, Ele que fala aos homens. Guarda-se a si mesmo, isto é, guarda a divindade em si.
VI – A alegria de Abraão
12.
Segue o sexto. O vosso pai Abraão suspirou por ver o meu dia; viu-o e
ficou cheio de gozo. Disseram-lhe, por isso, os Judeus: Tu ainda não
tens cinqüenta anos e viste Abraão? Disse-lhe Jesus: Em verdade, em
verdade vos digo, antes que Abraão fosse feito, eu sou.
Nota as três palavras: suspirou, viu e alegrou-se.Nota ainda que é
triplo do dia do Senhor: o do Natal, o da Paixão e o da Ressurreição.
Sobre o primeiro escreve Joel: Naquele dia sairá
uma fonte da casa do Senhor e irrigará uma torrente de espinhos. No dia
de Natal, uma fonte, isto é, Cristo, sairá da casa de David, isto é, do
útero da Santíssima Virgem, e irrigará uma torrente de espinhos, isto é,
refrigerará a abundância das nossas misérias, com que todos os dias
somos atormentados e feridos.
Acerca do segundo, diz Isaías: Meditou no seu espírito duro, para o dia da ardência. No dia da Paixão, em que o Senhor suportou a ardência
dos trabalhos e da dor no seu espírito duro, enquanto pendia na cruz,
meditou no modo de condenar o diabo e libertar de suas mãos o gênero
humano.
A respeito do terceiro, diz Oséias:
Ao terceiro dia ressuscitará, e nós viveremos na sua presença:
entraremos na ciência do Senhor e o seguiremos a fim de o conhecer. Ao
terceiro dia, Cristo, ressurgindo dos mortos, ressuscitou-nos juntamente
com ele, isto é, conformes com a sua ressurreição, porque assim como ele ressuscitou, também nós acreditamos que havemos de ressuscitar na ressurreição geral.
E entãoviveremos, entraremos na sua ciência e o seguiremos, a fim de o
conhecer. Nestes quatro verbos entendemos os quatro dotes do corpo
glorioso: viveremos: eis a imortalidade; entraremos na sua ciência: eis a
sutileza; o seguiremos: eis a agilidade; a fim e conhecermos o Senhor:
eis a claridade.
Abraão,
pois, isto é, o justo, exulta no dia do nascimento do Verbo Encarnado;
com a visão da fé, vê-o suspenso no patíbulo da cruz; com ele, já
imortal, gozará no reino celeste.
Disseram-lhe os judeus, olhando nele só para a idade da carne, sem considerar a natureza divina:
Ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão? Com trinta e um ou talvez
trinta e dois anos, pro causa do demasiado trabalho e instância da
pregação, o Senhor parecia ser mais velho. Disse-lhes Jesus: Antes que
Abrão fosse feito, eu sou. Não disse: fosse. Mas: fosse feito, porque
criatura; não disse, feito, mas: sou, porque criador.
VII – A ocultação de Jesus dos Judeus que o queriam lapidar
13. Segue o sétimo: Então pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus encobriu-se, e saiu do templo. Os apedrejadores recorrem a pedras para lapidar a pedra angular. Em si juntou as duas paredes:
o povo judaico e o povo gentio, que vinham de parte contrária. Os
judeus, imitadores da malícia de seus antepassados, quiseram lapidar o
Senhor dos profetas. Seus pais apedrejaram o profeta Jeremias no Egito. Por isso, diz-lhes o Senhor em S. Mateus: Sois filhos daqueles que mataram os profetas, e vós enchei a medida dos vosso pais.
14.
Sentido moral. Os falsos cristãos, filhos estranhos, filhos do diabo,
que mentiram ao Senhor, violando o pacto feito no Batismo, apedrejam
todos os dias, quanto deles depende, com as duras pedras dos seus
pecados, o seu pai e Senhor Jesus Cristo, do qual tiraram o nome de
cristãos, e se esforçam por matá-lo, por matar a fé
nele. Assemelham-se aos filhos do abutre, que deixam o pai morrer de
fome. Não são como os filhos do grou, que se expõem à morte pelo pai,
quando o abutre lhes persegue o pai; já envelhecido, alimentam-no,
por já não poder caçar. O nosso pai, como pai faminto, bate à porta,
para que lha abramos e lhe demos, se não uma ceia, ao menos um bocado de
pão. Eu, diz no Apocalipse, estou à porta e bato;
se alguém me abrir, entrarei na casa dele e cearei com ele e ele comigo.
Nós, porém, filhos degenerados, como os do abutre, deixamos morrer de
fome o nosso pai. Por isso, ele queixa-se de nós por boca de Jeremias:Porventura
tenho eu sido para Israel um deserto ou terra de trevas? Porque disse,
pois, o meu povo: Nós nos retiramos, não tornaremos mais a ti?
Porventura esquecer-se-á a donzela do seu ornato, ou a esposa da faixa
que lhe cinge o peito? Mas o meu povo esqueceu-se de mim durante dias
sem número. O Senhor não é deserto ou terra de trevas, que não dão fruto
algum ou dão pouco fruto, mas é paraíso de delícias e terá de bênção,
na qual recebemos o cêntuplo de tudo o que tivermos semeado.
Qual
a razão, pois, por que, miseráveis, nos afastamos dele e dele nos
esquecemos por tão longo tempo? Mas a alma, esposa de Cristo, donzela
pela fé e pela caridade, não pode esquecer-se do seu ornato, isto é, do
amor divino, de que anda adornada, e da faixa que lhe cinge o peito, ou
seja, da consciência pura, sob a qual vive segura.
Sejamos,
por favor, irmãos caríssimos, como os filhos do grou, a fim de que, se
for necessário, afrontemos a morte pelo nosso pai, isto é, pela fé do
nosso pai, e restauremos, com boas obras, este mundo, já envelhecido e
que depressa cairá na ruína, para que não nos suceda o que se ajunta:
Jesus, porém, encobriu-se e saiu do templo. E, por esta causa, dede o
presente domingo, que se intitula Paixão do Senhor, nos responsórios não
se diz Glória ao Pai. Todavia, não há completo silêncio, porque o
Senhor ainda não fora entregue nas mãos dos lanistas.
Roguemos,
portanto, e com lágrimas peçamos ao Senhor Jesus Cristo que não nos
encubra a sua face e não saia do templo do nosso coração, e não nos
argua de pecado no seu juízo; antes nos infunda a sua graça, para que
diligentemente ouçamos a sua palavra; nos conceda paciência na injúria
sofrida; nos livre da morte eterna; nos glorifique no seu reino, a fim
de merecermos ver o dia da sua eternidade juntamente com Abraão, Isaac e
Jacob. Ajude-nos ele mesmo, ao qual é devida honra e poder, decoro e
império pelos séculos eternos. Diga toda a Igreja: Assim seja.